Brasileiro relata morte em jornada aos EUA
Em entrevista à Folha, imigrante ilegal conta como um dos companheiros de travessia morreu
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
FSP, 16/07/2004
FABIANO MAISONNAVE
DA REDAÇÃO
Um companheiro morto, seis horas enclausurados dentro de um caminhão sob o sol do deserto e mais oito dias preso em cadeias americanas sem falar inglês. Esse é o saldo da desastrada jornada de um grupo de 29 imigrantes brasileiros rumo ao sonho americano, com escala na fronteira mexicana.
Em entrevista à Folha ontem, por telefone, o mineiro Tiago (nome fictício), 41, relata a trajetória desde o contato com os agenciadores no Brasil até a libertação pela imigração americana, no Texas.
Emocionado, ele conta em detalhes como ocorreu a morte do paulista Ricardo Luiz Ignacio, 31, perto da cidade de El Paso (Texas), na fronteira com o México. Foi o terceiro brasileiro a morrer tentando chegar aos EUA dessa forma nas últimas semanas.Seu corpo foi encontrado no último dia 3 pela polícia americana, mas não se sabia que ele pertencia ao grupo de 28 imigrantes ilegais brasileiros presos na mesma região dias depois.
Arrependido, Tiago não quis aproveitar uma oportunidade rara: em vez de ficarem presos até serem deportados, como ocorre normalmente, os brasileiros ilegais foram soltos com o compromisso de comparecer a uma audiência dentro de 30 dias.Vinte e três brasileiros aproveitaram a brecha e seguiram em direção a Boston, conforme haviam planejado. Outros três não foram soltos por serem reincidentes.
Tiago e um amigo, porém, pediram às autoridades americanas autorização que ficassem presos até serem deportados. Não conseguiram. "Expulsos" da cadeia anteontem, tentam agora reunir dinheiro para voltar ao Brasil.
Pai de três filhos entre 9 e 15 anos, o pequeno comerciante de Mendes Pimentel (MG) disse que não desembolsou um centavo pela viagem -os US$ 10 mil seriam pagos em dez parcelas mensais com o dinheiro ganho nos EUA.Tiago disse que não havia outra forma, pois seu ganho mensal no Brasil não chegava a R$ 300.
Para o historiador da USP José Carlos Meihy, autor do recém-lançado "Brasil Fora de Si", sobre imigrantes brasileiros em Nova York, trata-se de um esquema recente e perigoso: "O que acontece é que as "agências" passam a financiar passagens e estabelecem um acordo que envolve inclusive casas de envio de dinheiro dos EUA para o Brasil. É um novo sistema de dependência que pode ser equiparado à escravidão, pois as pessoas se endividam até em 60 meses para pagar aos "mediadores", e seus familiares, no Brasil, ficam como verdadeiros reféns".
A DECISÃO - Eu tenho amigos que foram para lá [Boston], então eu queria ir para ver se eu melhorava a vida, sabe? Sou casado, tenho três filhos, eu queria dar uma vida melhor para eles.
PAGAMENTO - O pagamento era parcelado: US$ 1.000 por mês, durante dez meses, para entregar na casa da família. Em alguns casos são nove meses; no meu caso, eram dez. Se não acontecer, não paga nada, ninguém vai pagar, porque não entregou. A gente tinha de trabalhar, tirar os mil deles, e o resto pra gente. Acho que é bastante sofrimento trabalhar ralando para pagar US$ 1.000 por mês, fora gastos, telefone, aluguel.A gente entra em contato por telefone, não sabe quem é nem nome de guia nem nada, não. Eles me deram US$ 1.500 na mão para a viagem. Mas isso é prejuízo deles, a gente não paga nada, não.Quando a pessoa tem dinheiro, chega ao lugar [nos EUA] e manda a família entregar. Não é o meu caso. Se a pessoa não passa, ela já liga para família e avisa: "Ó, não paga não, que eu não cheguei". Aí eles ficam no prejuízo também.
A MORTE DO BRASILEIRO - Era um pretinho, fortinho. Ele passou mal e não teve jeito. Eu fiquei sabendo só dias depois. Foi assim: a gente saiu de uma casa na rua e foi correndo. Ele correu bem na primeira vez, foram uns 20 minutos correndo, uns 20 minutos andando, era uma areia, a gente pisa e volta para trás, sabe? Mas os guias falaram: "Voltem pra trás". Tinha "sujado", o ônibus que ia pegar a gente passou direto.
A DECISÃO - Eu tenho amigos que foram para lá [Boston], então eu queria ir para ver se eu melhorava a vida, sabe? Sou casado, tenho três filhos, eu queria dar uma vida melhor para eles.
PAGAMENTO - O pagamento era parcelado: US$ 1.000 por mês, durante dez meses, para entregar na casa da família. Em alguns casos são nove meses; no meu caso, eram dez. Se não acontecer, não paga nada, ninguém vai pagar, porque não entregou. A gente tinha de trabalhar, tirar os mil deles, e o resto pra gente. Acho que é bastante sofrimento trabalhar ralando para pagar US$ 1.000 por mês, fora gastos, telefone, aluguel.A gente entra em contato por telefone, não sabe quem é nem nome de guia nem nada, não. Eles me deram US$ 1.500 na mão para a viagem. Mas isso é prejuízo deles, a gente não paga nada, não.Quando a pessoa tem dinheiro, chega ao lugar [nos EUA] e manda a família entregar. Não é o meu caso. Se a pessoa não passa, ela já liga para família e avisa: "Ó, não paga não, que eu não cheguei". Aí eles ficam no prejuízo também.
A MORTE DO BRASILEIRO - Era um pretinho, fortinho. Ele passou mal e não teve jeito. Eu fiquei sabendo só dias depois. Foi assim: a gente saiu de uma casa na rua e foi correndo. Ele correu bem na primeira vez, foram uns 20 minutos correndo, uns 20 minutos andando, era uma areia, a gente pisa e volta para trás, sabe? Mas os guias falaram: "Voltem pra trás". Tinha "sujado", o ônibus que ia pegar a gente passou direto.
Ele voltou e cansou. E toca a correr de novo.Aí ele desmaiou, trincando as mãos, os dentes, e ficou num canto lá onde um colega dele o colocou porque não tinha como carregar. Fizeram respiração boca-a-boca, mas não teve jeito. Não tinha como socorrer, a gente já estava longe, não tinha carro. Eu também estava passando mal demais, mas venci, graças a Deus. Ficaram dois colegas com ele. Depois de uns dias, eles chegaram à casa onde estávamos e disseram: "O pretinho morreu".
O CAMINHÃO-BAÚ -Eram umas três da madrugada quando nós subimos num baú. Eles disseram que seria só por duas horas, que depois íamos passar para uma cabine, mas não aconteceu, não. Foi terrível. O caminhão tinha umas 33 pessoas, quase todas desmaiando para morrer, e estava lotado de caixas. Na parte de cima só havia um metro para a gente ficar sentado, com um calor terrível. Nós ficávamos sentados com as pernas dobradas para cima.
O CAMINHÃO-BAÚ -Eram umas três da madrugada quando nós subimos num baú. Eles disseram que seria só por duas horas, que depois íamos passar para uma cabine, mas não aconteceu, não. Foi terrível. O caminhão tinha umas 33 pessoas, quase todas desmaiando para morrer, e estava lotado de caixas. Na parte de cima só havia um metro para a gente ficar sentado, com um calor terrível. Nós ficávamos sentados com as pernas dobradas para cima.
Nós andamos por seis horas direto, sem ar nenhum. Teve uma hora em que ele abriu uma brechinha e trancou a porta de novo; andou mais um tempo e abriu mais um pouquinho. Eu comecei a chutar forte para ver se ele abria a porta. Demos chutes no caminhão até que ele abrisse. Abriu a porta. Você tinha de ter visto uma mulher passando mal lá no meio, ela estava arrancando a roupa.
A PRISÃO - Quando fomos presos, nós estávamos num mato para onde o motorista tinha mandado correr. O caminhão tentou correr, mas a polícia foi atrás e prendeu o motorista. Ele pegou uma prisão perpétua. Mas nós fomos muito bem tratados, eles são legais demais. Só a comidinha que é diferente da da gente, né? A comidinha lá é meio difícil. Mas o tanto que a gente andou de cadeia em cadeia, nossa, "não tá no gibi", eram quatro horas de viagem, eram duas horas de viagem, uma transferência de cadeia. Fomos transferidos umas quatro ou cinco vezes. Até numa detenção a gente foi parar.
A DESISTÊNCIA - A gente não quis seguir viagem. Eu queria ficar preso até conseguir uma deportação. Deixaram ficar só mais um dia, aí a gente saiu e procurou o consulado brasileiro. Nós estamos voltando neste domingo agora. Eu sofri demais, pelo amor de Deus! Ainda mais depois que um colega morreu. Estou com saudades demais da minha família. Já chorei muito, já liguei para lá hoje [ontem]. Eu já contei o caso para minha mulher, ela até chorou também.
A PRISÃO - Quando fomos presos, nós estávamos num mato para onde o motorista tinha mandado correr. O caminhão tentou correr, mas a polícia foi atrás e prendeu o motorista. Ele pegou uma prisão perpétua. Mas nós fomos muito bem tratados, eles são legais demais. Só a comidinha que é diferente da da gente, né? A comidinha lá é meio difícil. Mas o tanto que a gente andou de cadeia em cadeia, nossa, "não tá no gibi", eram quatro horas de viagem, eram duas horas de viagem, uma transferência de cadeia. Fomos transferidos umas quatro ou cinco vezes. Até numa detenção a gente foi parar.
A DESISTÊNCIA - A gente não quis seguir viagem. Eu queria ficar preso até conseguir uma deportação. Deixaram ficar só mais um dia, aí a gente saiu e procurou o consulado brasileiro. Nós estamos voltando neste domingo agora. Eu sofri demais, pelo amor de Deus! Ainda mais depois que um colega morreu. Estou com saudades demais da minha família. Já chorei muito, já liguei para lá hoje [ontem]. Eu já contei o caso para minha mulher, ela até chorou também.
FSP, 16/07/2004
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