7.10.2004

Brasileiros ilegais nos EUA batem recorde

Nos últimos dez anos, o total de presos ao atravessar a fronteira com o México cresceu dez vezes

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK
Márcia, uma imigrante ilegal que deixou o Brasil em 2002 e hoje mora em Nova York, diz que tentou por três vezes conseguir o visto de turista para entrar nos EUA - com a intenção de permanecer para trabalhar. "Antigamente era mais fácil. Fui lá com toda a documentação, não deu. Aí resolvi vir pelo México."
Ela faz parte da face oculta de números conseguidos pela Folha que mostram que a quantidade de brasileiros presos após atravessar a fronteira do México para entrar nos EUA aumentou mais de dez vezes em quatro anos -passou de 488, em 1999, para 5.008, no ano passado.
Não há contabilidade precisa dos que tentam nem dos que conseguem entrar, pela razão óbvia de se tratar de uma atividade ilegal. Mas o governo americano reconhece que a quantidade dos que se arriscam é proporcional à dos que são pegos, e especialistas apostam numa relação de três casos bem-sucedidos para cada tentativa frustrada pelas autoridades dos EUA.
Márcia é, portanto, um exemplo do número crescente de brasileiros que têm trocado o visto de turista e a viagem aérea direta para os EUA por uma travessia que pode custar até US$ 10 mil -pagos às quadrilhas que têm ramificações no Brasil e no México- e, na melhor das hipóteses, implicará passar dias no deserto ou cruzar rios a nado.
A pedido da Folha, a Patrulha de Fronteira, vinculada ao Departamento da Segurança Interna (órgão do governo americano que unifica as funções de controle de imigração, fiscalização de fronteiras e prevenção ao terrorismo), levantou o número de brasileiros e o total de pessoas detidas ao tentar cruzar ilegalmente a "fronteira sudoeste" -divisa com o México.
Em 1999, foram 488 brasileiros detidos. Em 2000, 1.241; em 2001, 3.105; em 2002, 2.946; e em 2003, 5.008.
Os números são contabilizados entre o dia 1º de outubro do ano anterior e o dia 30 de setembro do ano a que se referem.
Neste ano, até a terceira semana de junho, 4.401 brasileiros já haviam sido detidos. Segundo Mario Villarreal, porta-voz da Patrulha de Fronteira, o total de detidos deve se manter no patamar do ano passado, ultrapassando por pouco os 5.008 de 2003. Os números de brasileiros detidos são ainda mais significativos se comparados ao total de pessoas paradas pela patrulha nos mesmos anos. A tendência é inversa, havendo declínio entre 2000 e 2003, com novo aumento em 2004 -insuficiente, no entanto, para representar um aumento geral no mesmo período.
Em 1999, 1,537 milhão de pessoas foram detidas na fronteira. Em 2000 foram 1.643.679; em 2001, 1.235.717; em 2002, 929.809; e em 2003, 905.065. Logo, enquanto o número de brasileiros detidos entre 1999 e 2003 aumentou 926%, o número total de ilegais presos pela patrulha de fronteira caiu 41% no mesmo período.
Neste ano, até a terceira semana de junho, 825.305 pessoas haviam sido detidas, no total, na fronteira sul. Faltando ainda 1/4 do período a ser contabilizado (até 30 de setembro), é razoável supor que o número ultrapassará o do total de 2003. Mas é bastante improvável que supere o de 1999.
Ou seja, o aumento no número de detenções de brasileiros não se deve a um simples recrudescimento maior da vigilância na divisa com o México -o que deveria provocar um aumento proporcional, caso esse fosse o único fator em questão, no número de brasileiros e no número total de detidos.
Segundo John Keeley, do Centro para Estudos de Imigração, para cada pessoa detida ao tentar entrar, estima-se que três consigam entrar ilegalmente nos EUA. Mario Villarreal, da patrulha de fronteira, diz preferir não especular sobre o número dos bem-sucedidos, mas afirma que há "proporção" entre prisões e casos de entrada ilegal.
Ele enumera, entre as causas gerais para aumento de imigrantes desse ou daquele país, "crises econômicas, mudanças de administração, desvalorizações das moedas locais, desastres naturais".
Mas os brasileiros ilegais entrevistados pela Folha em Nova York dizem todos que a crescente dificuldade para conseguir o visto de turista é o principal incentivo para a opção pela travessia a partir do México, onde a entrada é mais fácil.
O advogado Moisés Apsan, que trabalha há mais de 20 anos nos EUA com causas de imigrantes, concorda. "Os brasileiros aprenderam como entrar neste país. Não tem outro jeito, porque eles vão ao consulado e não conseguem visto", diz.
Apsan fala que os riscos estão muitas vezes associados aos responsáveis pela empreitada -que cobram para realizar a travessia-, conhecidos como "coiotes". Há diferentes quadrilhas, que competem entre si, denunciando grupos liderados por adversários às autoridades americanas no momento da tentativa de cruzar a fronteira. "Há os que fazem o serviço bem feito, e outros que podem até matar ou deixar alguém no caminho sem água."
Um "coiote" brasileiro contatado pela Folha em Governador Valadares (MG) -que concordou em falar sob a condição de não ter seu nome revelado- bota a culpa nos Estados Unidos: "Se o governo americano fosse mais flexível, não teria esse fluxo de gente entrando pelo México".
Corpo de Ricardo Ignacio, que morreu após cruzar fronteira com México, foi achado no dia 3, em El Paso
Outro brasileiro morre no deserto dos EUA

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Foto de Ricardo Luiz Ignacio, que morreu nos EUA, com brinquedos dos filhos em sua casa em SP

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK
BERTA MARCHIORI
DA REDAÇÃO
O paulista Ricardo Luiz Ignacio, 31, foi achado morto há uma semana, no dia 3, na cidade de El Paso (Texas), após cruzar ilegalmente a fronteira do México com os EUA. Ignacio foi o terceiro brasileiro que morreu nos últimos 36 dias durante a travessia. Ignacio morreu por causa do excesso de calor enquanto atravessava o deserto, disse a médica americana que o examinou, Corinne Stern. Segundo ela, o brasileiro deve ter morrido um ou dois dias antes de ser achado, a menos de 2 km do rio que separa os dois países, por um homem que passeava com seu cachorro.
A família de Ignacio, que mora em Santo Amaro (zona sul de São Paulo), recebeu a notícia de sua morte no dia 2 de julho, supostamente por um companheiro de viagem, que não se identificou. Foi a primeira informação que teve desde que Ignacio deixou o Brasil, em 27 de junho.
O colega não entrou em detalhes, só disse que já haviam chegado aos EUA, que o sol estava muito forte e que Ignacio "não tinha agüentado a viagem", declarou Silvia Cristina da Silva, 28, com quem Ignacio vivia há 11 anos. Eles tinham dois filhos, de dez e cinco anos de idade.
Quando foi encontrado, Ignacio estava sem camisa e tinha um passaporte brasileiro no bolso. O detetive John Greer, da polícia de El Paso, confirmou que o brasileiro era um imigrante ilegal. "Não sabemos por que escolheu esse caminho", disse Stern sobre o fato de Ignacio ter cruzado o deserto quando poderia ter chegado aos EUA atravessando um rio.
Stern afirma que, apesar da pouca idade, não estranha o fato de Ignacio ter morrido. "As temperaturas eram muito altas, e não sabemos por quanto tempo andou no deserto." Segundo a família, Ignacio não tinha nenhum problema de saúde.Ignacio estava desempregado havia cinco meses quando decidiu ir para os EUA "em busca de uma vida melhor". Antes, trabalhava em uma firma de equipamentos hospitalares. Sua mulher está desempregada há dois anos.
Quando informou a sua decisão, seus familiares tentaram fazê-lo desistir. "Desiste disso. A gente dá um jeito aqui. Fome ninguém vai passar", disse Silvia ao marido. Segundo ela, Ignacio disse que iria se juntar a um grupo de Governador Valadares (MG) que seria levado aos EUA por um "coiote" mexicano (pessoa que transporta ilegalmente imigrantes do México para os EUA).
O consulado brasileiro entrou em contato com a família de Ignacio em São Paulo. A previsão é que o corpo chegue ao país em uma semana.
Porém as dificuldades não esbarram somente na falta de ajuda e de informação. Sem recursos, a família está pedindo dinheiro a parentes e vizinhos para conseguir trazer o corpo. Silvia não sabia ao certo, mas achava que o custo do transporte girasse em torno de "US$ 4 mil e US$ 5 mil".
Questionados sobre se o governo deveria promover campanhas a fim de alertar dos riscos da imigração ilegal, todos foram unânimes. "O governo tem que dar é emprego. Entra governo, sai governo, e nada muda. Está cada vez pior", declarou Silvia.No último domingo, a Folha mostrou que houve aumento de 926% no número de brasileiros detidos ao tentar entrar nos EUA pela fronteira com o México entre 1999 e 2003 -de 488 para 5.008. Segundo o Itamaraty, cerca de 2,5 milhões de brasileiros vivem hoje fora do país. O contingente é o maior já registrado.

FSP, 10/07/2004