6.27.2004

Carreira: Eles querem o emprego delas

Os homens avançam em profissões atéhoje consideradas território das mulheres

Gabriela Carelli


Nélio Rodrigues/1º Plano
NA PRÉ-ESCOLA
Fernando Resende dá aulas de recreação: único "tio" entre dezenas de "tias"

É raro encontrar um pai ou uma mãe que não ache estranho quando os diretores do Colégio Pitágoras, em Belo Horizonte, lhes apresentam o responsável pela recreação de seus filhos matriculados na educação infantil: Fernando Antonio Resende, ou melhor, o "tio" Fernando. O espanto justifica-se. Resende é um dos pouquíssimos homens que lecionam para crianças com idades entre 2 e 6 anos – uma seara notoriamente feminina, domínio das "tias". Nem mesmo ele havia imaginado, um dia, ser capaz de lidar com meninos e meninas tão pequenos. Formado em administração de empresas, Resende começou a carreira na iniciativa privada. Depois, foi funcionário da Caixa Econômica Federal por sete anos. Descontente com a vida burocrática, ingressou num programa de demissão voluntária e decidiu cursar educação física. Após terminar a faculdade, no ano passado, foi atrás de uma vaga em academias e clubes. Em vão. Surgiu então a proposta do colégio. "Nunca tinha pensado nessa função, mas aceitei. E descobri uma vocação: adoro as crianças e elas me adoram", conta o "tio", de 39 anos. O salário, bem mais baixo que o que recebia no banco, não o assusta. "Eu me encontrei. Não há dinheiro que pague essa realização. Foi numa área de mulheres, mas e daí?"

Histórias semelhantes às de Resende estão se tornando cada vez mais comuns. Seja por falta de emprego, seja pela flexibilização dos limites rígidos que definiam as funções femininas e masculinas até pouco tempo atrás, cada vez mais homens são atraídos pelas profissões nas quais as mulheres são maioria. Dados do Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo (isso mesmo, secretárias, só no feminino) mostram que hoje 10% dos profissionais de secretariado no Brasil são homens. "Há quinze anos era quase impossível encontrar um homem secretário", diz a diretora da entidade, Marlene Gomes. Quando os call centers se popularizaram, há dez anos, as atendentes representavam 90% dos contratados. Hoje, 30% do total são homens. A participação masculina no ensino pré-escolar ainda é ínfima, mas aumentou 15% na década de 90. Na enfermagem, o número de homens saltou de 12% em 1998 para 15% hoje. Parece pouco, mas trata-se de um aumento de 25% num universo praticamente cor-de-rosa.
O desemprego é o principal motivo para os homens se esquecerem dos estereótipos. "Eles ingressam nesses cargos porque, como a cultura de ser o provedor da casa ainda é predominante, é melhor ter um trabalho do que não ter nenhum", pondera a socióloga Heleieth Safiotti, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Formado em economia, Danilo Mello, de 38 anos, trabalhou por quatro anos como supervisor numa multinacional. A empresa cortou centenas de funcionários e Mello foi um deles. Pai de duas filhas, de 12 e 8 anos, ele tentou procurar uma vaga em sua área de atuação. De nada adiantou dominar três idiomas, ter experiência e prêmios no currículo. O único emprego que conseguiu, no curto prazo, foi o de atendente numa firma de telemarketing. Tornou-se o responsável pelas ligações feitas para o exterior. "Por enquanto, é o que tenho para manter minha família e não me envergonho disso", ele diz.
As profissões femininas têm uma vantagem: geralmente possuem uma carga horária menor. Isso permite ao homem aumentar a renda com atividades paralelas. O psicólogo Rodrigo Nejm, paulista de 24 anos, recém-formado e sem perspectivas imediatas, aceitou trabalhar como professor de estudo assistido no ensino fundamental do Colégio Magno, de São Paulo. Como trabalha só quatro horas por dia, começou o mestrado. "Com o advento do feminismo, a entrada das mulheres em áreas de domínio masculino e a necessidade de divisão de tarefas no lar, os homens passaram a encarar funções típicas de mulheres com mais naturalidade", diz o psiquiatra Luiz Cuschnir, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Entre quatro paredes, essa transformação já foi registrada. Segundo o IBGE, o número de homens que se dedicam a alguma tarefa doméstica subiu 58,3% entre 1992 e 1999. "Essa flexibilidade dentro de casa começa a se refletir na vida profissional. Nas duas gerações anteriores, os papéis dos gêneros eram encarados de forma tão rígida que muitos homens com vocação para as profissões femininas desistiam de seguir em frente", ele diz.

Vinícius Batista Santos, de 25 anos, enfermeiro do Hospital São Paulo, sempre teve intenção de seguir a carreira. "Não fiquei em dúvida só porque havia mais mulheres na área, mas muitas famílias ainda relutam em aceitar ter um filho enfermeiro", ele conta. Enterrar o mito do machão e enfrentar o paradigma estabelecido desde o início da humanidade – o de que o homem caça e a mulher cuida dos filhotes – é bastante difícil. Tanto que a maioria dos homens que enveredam pelo território feminino volta para os empregos masculinos em pouco tempo. Um estudo da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, mostrou que, após quatro anos de formados, os enfermeiros deixam seus empregos numa proporção duas vezes maior que suas colegas. A permanência dos homens nas profissões majoritariamente femininas em geral só acontece quando o emprego é fonte de prestígio e tem boa remuneração. "Na década de 60, os professores homens eram maioria, inclusive no ensino fundamental, porque os salários eram bons. Com a desvalorização da carreira, eles migraram para outras áreas onde podiam ganhar melhor e ter mais status", diz a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo. "Isso explica, por exemplo, por que os homens professores hoje se concentram no ensino médio e universitário, onde se paga melhor". Em outras palavras: empregos femininos são bem-vindos, sim, desde que não surja coisa melhor...

O mapa da conquista masculina

ENFERMEIROS
O número de homens trabalhando no setor aumentou 25% nos últimos seis anos
SECRETÁRIOS
Há quinze anos não havia registro de homens nessa categoria. Hoje eles são 10% do total de profissionais
ATENDENTES DE CALL CENTER
Há dez anos eles representavam 10% da classe. Hoje, somam 30%
PROFESSORES INFANTIS
Nos anos 90, o número de professores aumentou 15% na pré-escola e 34% no ensino fundamental
Fontes: Seade, Conselho Regional de Enfermagem-SP,Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo

VEJA on-line, 27/06/ 2004