6.27.2004

Clandestino

Brasileiros em situação ilegal se fazem passar por portugueses para trabalhar em fábricas no Reino Unido


Imagem de raio-X mostra imigrantes ilegais em caminhão, a caminho do porto francês de Calais

CLARISSA BERETZ
FREE-LANCE PARA A FOLHA
"Virar português" é a solução encontrada por centenas de brasileiros que vivem de maneira ilegal no Reino Unido. Com uma câmera escondida, percorri a rota dos imigrantes que chegam em busca de trabalho, falsificam sua identidade e terminam explorados em fábricas no interior do país.
O benefício de falar a língua de Portugal, membro da União Européia, é o motivo pelo qual a maioria dos documentos copiados é da nacionalidade lusitana.A identidade tem o mesmo valor que um passaporte dentro da UE. E isso quer dizer que seu portador tem direito a trabalhar, a estudar e a entrar livremente em quaisquer países pertencentes ao bloco econômico e político.
A coisa anda tão escancarada que recentemente a rede de teve britânica ITV entrou em contato comigo para fazer parte de um documentário mostrando como o trâmite acontece. Com uma pequena câmera no buraco do botão da camisa, fui com José, um repórter português, atrás de uma das redes que oferecem documentos falsos, além de trabalho e moradia a essas pessoas.
Tudo começa com a aquisição da "amarelinha", como é chamado o documento de identidade.
Os rumores acusavam a agência de empregos Nettos, ao sul de Londres, na qual brasileiros e portugueses se amontoam em filas para falar com Domingo, um português cujo sobrenome batiza a agência.
Dissemos ser um casal de namorados em busca de trabalho no campo, onde o custo de vida é mais baixo, além da moradia oferecida. Ao "confessar" que estava ilegal, sacando do bolso o meu passaporte - o "verdinho"-, o dono da agência já foi dizendo que com aquilo em não iria a "lugar nenhum". Era preciso conseguir a identidade portuguesa. Não é difícil. Num bairro cheio de brasileiros, em um café onde a comunidade se reúne, em poucos minutos um grupo de desconhecidos já me dá um telefone de quem a produz.Em uma hora um rapaz me esperava num outro canto da cidade. Dei-lhe uma foto, coloquei meus dados falsos numa folha de papel e assinei. Paguei 50 libras (R$ 284) e, em 20 minutos, o garoto voltou com a amarelinha nas mãos. Surpreendente. A assinatura escaneada, selo branco em relevo, tudo. Comparando-a com a do meu companheiro lusitano, era impossível detectar, pelo menos a olho nu, a diferença entre ambas. Perfeita. Há um ano, o mesmo papel não saía por menos de 250 libras (R$ 1.420)."Fazemos cerca de quatro a cinco por dia", confirma o rapaz, identificado como Douglas. Ele disse ainda que um passaporte português ou italiano pode ser conseguido por algo entre 500 e mil libras (R$ 2.840 e R$ 5.680), dependendo "do que você quiser". Os mais caros são os passaportes clonados de outro verdadeiro. Seus dados constam no consulado do país, o que lhe dá legitimidade. Logo, porém, notei a superficialidade da "perfeição". A carteirinha já vem com uma impressão digital, de outra pessoa. "Não pega nada, ninguém checa", acalmou-me Douglas. "Você pode abrir conta em banco com ela, e, se tiver coragem, dá até para viajar pela Europa."
Deportação
Haja coragem. Enfrentar uma aduana com um documento falso é crime. Se tiver sorte, o criminoso é "apenas" deportado. Num vôo Londres-São Paulo, em agosto passado, minha mãe voltou ao lado de um rapaz de Florianópolis que chorava copiosamente por ter sido pego nessas condições. "Não vale a pena. Saí com a roupa do corpo, deixei tudo o que tinha e fiquei preso por uma semana. Graças a Deus só me expulsaram do país", dizia.De acordo com o Home Office, o Ministério do Interior da Inglaterra e do País de Gales, no ano passado foram apreendidos 101 mil documentos de identidade e passaportes falsificados."O número tem aumentado a cada ano, e o nosso objetivo é combater cada vez mais esse tipo de infração", disse uma porta-voz do órgão.
Na fábrica
Já com minha "cidadania" européia, voltamos à agência e assinamos o contrato, que nos garantia ganhar 4,50 libras (R$ 25,50) por hora em fábricas na cidade de Leicester. Não sem antes pagarmos a taxa de 50 libras. Netto nos disse que os próprios empregadores já sabem que o documento é ilegítimo.No dia seguinte, compramos passagem e embarcamos para nossa triste aventura, que duraria cinco dias.Um português chamado Nuno e seu sócio, o goiano Miguel, nos esperavam na rodoviária. Já no hotel simples onde os brasileiros moram começa a dureza da clandestinidade. Enfurnados em pequenos quartos, em grupos de cerca de seis pessoas, eles acordam às 4h para uma jornada de oito a 14 horas diárias em fábricas de sucos e sanduíches ou coletando frutas nos campos.As condições assustam. Em um dos quartos, dois casais se espremiam em colchões de solteiro com a sogra de um deles no meio, além de outras duas pessoas. Parecia cortiço. Máquina de lavar roupas não existe. Na pequena cozinha desprovida de estrutura mínima, preparam a comida -geralmente pão com manteiga e macarrão. "Emagreci oito quilos em um mês, não tenho dinheiro para comer até receber meu primeiro salário", conta Fabrício, um curitibano de 26 anos, enquanto me oferecia um pouco do seu café. Ele vendeu a moto que tinha e deixou a namorada grávida em sua cidade natal para tentar a vida no Reino Unido. "Estou arrependido, mas vou ficar pelo menos até recuperar o dinheiro que gastei."Sem um quarto disponível naquele momento, Nuno nos acolheu. Em seu quarto, assinamos vários papéis e pagamos 150 libras (R$ 852) pelo aluguel e o depósito do quarto. Praxe. Pelo fato de José ser português, Nuno logo passou a confiar em nós, revelando, para nosso espanto, os benefícios de empregar brasileiros."Adoro trabalhar com brasileiros, eles vêm desesperados e são um bando de ignorantes, vivem com medo de serem apanhados, então ficam quietos. Assinam o contrato em inglês sem terem noção e pagam na hora, sem perguntar nada. Já cheguei a cobrar até 400 libras (R$ 2.272) de um casal que veio trabalhar", disse, entre risadas. Por sorte, Nuno conseguiu para nós um quarto de casal, no qual podíamos preparar a câmera e rever as fitas. "Tenha paciência. Sendo português, logo te arranjo algo melhor", disse ele a José.
Goiânia
Não demorou muito para ficarmos amigos dos 17 brasileiros que ali moravam, os "ignorantes" que não falam inglês, os que só sabem ir do hotel para o trabalho, de onde saem e chegam cansados. Os que deixam uma história e a família para trás em troca da solidão, numa rotina de comer, dormir e acordar para a próxima jornada.Pelo menos metade deles era de Goiânia. Em seguida vinham mineiros e pessoas de outros Estados. Das conversas na cozinha rendiam os melhores papos e as histórias de vida de cada um. Uma bela mulata que chorava de saudade do filho recém-nascido; um senhor falido que, já sem nada a perder, veio suar para sustentar a família; um advogado de Mato Grosso do Sul que sonha em montar seu escritório; gente que, apesar de tudo, acredita estar bem empregada.Assim como Fabrício -que ia para a ilha do Mel a cada fim de semana-, alguns deles não tinham muito do que reclamar no país tropical, mas, pela ilusão da moeda forte, abriram mão da qualidade de vida.E, enquanto compartíamos a insossa comida, eu ouvia tudo e me remoía por dentro, me policiando para não cair em contradição, manter meu nome fictício e a minha história de vida inventada, como se fosse um deles.
Fila para trabalho reúne desesperados de vários países
Desesperados de várias nacionalidades faziam fila diante de uma agência da qual sairiam carros para levá-los ao trabalho numa fábrica de sanduíches frios em Leicester, que emprega imigrantes ilegais.
A quantidade de gente era espantosa. Iraquianos, afegãos, indianos, poloneses, africanos, alguns portugueses e uma massa de brasileiros aguardavam para entrar nos carros. "Estou congelando, não tinha idéia que aqui fazia tanto frio. Não tenho dinheiro nem sei como comprar uma calça aqui", disse Marileide, uma goiana de 43 anos, mostrando a única saia que tinha trazido, de pano bem fininho, sob a garoa, a uma temperatura de uns 3C.
Ninguém da agência pediu documentos. Na fábrica, após os procedimentos de higienização, pusemos botas de borracha e toca descartável e entramos num tipo de frigorífico. Nossa missão era colocar, ininterruptamente, os ingredientes que compunham os sanduíches, os mesmos que eu muitas vezes comprei nas grandes cadeias de supermercados em Londres e que agora corriam freneticamente por uma esteira.Ao fim das primeiras cinco horas sem nenhum intervalo, comecei a pedir água. Eu já não era capaz de continuar com o trabalho que meus companheiros faziam a cada dia e tive de engolir, envergonhada, o choro de quem nunca precisou viver aquela realidade.Após dez horas de trabalho, já com o sol raiando e uma música eletrônica no último volume dentro da van que voltava para a agência, olhei um por um dentro daquele carro -todos dormiam, exaustos- e pedi perdão, em silêncio, a cada um deles. A sensação de alívio em denunciar na TV tamanho abuso era inversamente proporcional à culpa por delatar o o meio de sustento dessa gente.
Menos dinheiro
Basta receber o primeiro pagamento para ter uma idéia da exploração. Após todos os descontos -taxas, transporte diário e acomodação-, o trabalhador recebe pouco mais que 2,80 libras (R$ 15,90) por hora.No dia seguinte, ao voltar com seu primeiro salário -recebido somente depois da segunda semana trabalhada-, a brasileira Marileide me mostra a quantia: 68 libras ($ 386) por três dias no batente. Bem longe do que lhe oferecia o contrato."A gente sabe que está sendo explorada, mas, mesmo assim, dá para mandar algum dinheiro para a família", conformou-se.Numa tarde no hotel onde estavam amontoados, os brasileiros ilegais decidiram fazer uma reunião com Miguel, o português agenciador de mão-de-obra, para cobrar melhores condições de moradia.Perguntei-lhe, na ocasião, por que os contratos não eram traduzidos em português e se eu podia ter um recibo do aluguel. Ele respondeu: "Você nem existe, teu documento é falso".
Frio arrepiante
No último dia me perdi de José, e me mandaram para Orchard, uma fábrica onde minha função era descascar laranjas. Num local do tamanho de um estádio de futebol, onde centenas de pessoas picavam diferentes tipos de frutas, o frio era arrepiante.À minha frente, uma mulher com típicas feições indígenas da América do Sul me confirmou ser boliviana e que tinha pago US$ 1.000 pela cidadania portuguesa em Londres. Ela também vivia com brasileiros numa casa provida por Miguel.Na hora do intervalo, soube que José fora retirado do ônibus por "excesso de contingente". Nosso plano era fugirmos naquela tarde, mas então percebi que estava sozinha.
Corri, ainda de touca, pelas ruas desertas da zona industrial, sem encontrar nenhum telefone pelos arredores. De volta ao frigorífico, encontrei um dos meus conhecidos que tinha um celular escondido. Do banheiro, liguei para José e pedi que viesse me buscar.Fingi passar mal. Fui levada ao escritório de Waldo, o manda-chuva português-moçambicano que supervisionava a agência de mão-de-obra nas fábricas. Ele me deu dois comprimidos e disse para eu sentar.
Lembro-me de quando vi pela última vez meu amigo do celular. "Não me chame mais de Dione, esse é o meu nome no documento", ele disse. "Meu nome é Fábio", piscou o olho, em tom de confiança. "O meu tampouco é Maria", me deu vontade de falar, com aperto no coração.
Já com o tempo calculado da viagem de José, saí do escritório, com a desculpa de ir vomitar, correndo pelas ruas até avistar o carro que surgia para o meu resgate.Cheguei a Londres atordoada, com a sensação de ter literalmente saído de uma ficção. Levei um tempo para me adaptar à minha casa e à vida normal. Ao menos deixei duas calças e uma blusa para Marileide. E jurei nunca mais comprar um sanduíche de atum na Marks & Spencer. (CB)