Pobreza na Paris glamourosa
Deborah Berlinck
Correspondente PARIS
Boulevard Saint Germain, sexta-feira, 11h. No bairro chique de Paris, o termômetro marca um grau centígrado. Um frio de penetrar os ossos. Jean-Claude Patin, francês da Provença, 44 anos, está sentado sobre sua mala, na calçada, encostado à vitrine de uma loja. Vai ficar ali até não agüentar e, ao anoitecer, vai forçar a porta dos prédios para ver qual abre: é a sua chance de dormir no calor. Há quatro meses sem receber salário, o ex-operário de uma empresa de cimento acabou na rua e diz esperar uma decisão do tribunal, na sua briga com o empregador. Hoje integra a leva de novos-pobres de Paris.
— A primeira vez que estendi a mão para pedir dinheiro, chorei. Estou há três semanas na rua. Isso nunca tinha me acontecido. Em Paris, quem tem se salva, quem não tem afunda — diz ele, separado e pai de duas filhas.
Jean-Claude não atingiu o fundo do poço, como os franceses Philippe, Aisha e Manuel Pereira, este último um filho de portugueses que diz trabalhar informalmente no setor de construção. Ao anoitecer, os três se instalaram na calçada da Rue Ancienne Comédie, no mesmo bairro, onde passariam a noite. A poucos metros deles, um homem bem-vestido de meia idade caía duro no chão, aparentemente vítima de uma crise cardíaca. Manuel menosprezou em voz alta o destino do homem, atraindo olhares reprovadores dos passantes. Os três mal articulavam as palavras, de tão alcoolizados. Aisha filosofou:
— Estou desesperada com os seres humanos, com a desvalorização da sociedade... Apesar da minha miséria, jamais fui tão feliz.
Em Paris, 35% dos sem-teto trabalham
Há uma Paris muito diferente por trás da fachada glamourosa. No momento em que o ministro da Economia, Hervé Gaymard, cai do cargo atropelado por um escândalo — alugou um apartamento de 600 metros quadrados por conta do governo, por 14 mil euros por mês, quando é proprietário de cinco imóveis — estatísticas mostram uma crise sem precedentes no setor de habitação: os aluguéis na capital explodiram, os pobres estão sendo expulsos e o governo não investiu o bastante em moradias populares. Este é, segundo Michel Castellan, da organização humanitária Emmaus, um dos fatores por trás do aumento do número de pobres em Paris, junto com desemprego de 10% no país e a precariedade do trabalho.
Paris está cada vez mais burguesa. À medida que as classes média e rica ocupam quarteirões populares — levando os preços dos aluguéis a subirem (de 2000 a 2003, 35%) — aumenta o fenômeno dos trabalhadores pobres que declaram não ter domicílio. Segundo Castellan, 35% das pessoas sem-teto em Paris trabalham.
‘Aqui se morre de solidão’
Um estudo publicado em janeiro pelo Atelier Parisien d’Urbanisme (Apur) revelou que 12% dos moradores da capital (o correspondente a 210 mil pessoas) vivem com menos de 670 euros por mês, isto é, abaixo da linha da pobreza. Hoje a extrema pobreza afeta uma em cada oito casas em Paris. Um terço dos casos é de famílias desintegradas —- mães sustentando sozinhas os filhos, por exemplo. O mesmo percentual vale para famílias estrangeiras. Mas estas, ao menos, têm teto. A psicóloga Beatrice Girard dirige um centro Emmaus que aloja por um período médio de dois anos 23 famílias sem-teto e as ajuda a se reinserirem na sociedade. Ela assiste à degradação. Um estudo da Direction de L’Action Sanitaire et Social mostra que, só em Paris, há 400 mulheres grávidas por ano vivendo na rua.
— Há 10 anos as assistentes sociais nos enviavam 40 pedidos de alojamento. Hoje recebo 1.600 por ano. Mas não há lugar — lamenta Girard.
Organizações humanitárias como a Emmaus se mobilizam para ajudar os pobres em etapas: centros de urgência em pontos-chave da cidade para tirá-los da rua, com ducha, lavagem de roupa, médico, ateliês para aprendizado. Depois, alojamentos intermediários e hotéis onde prolongar a estada. Supostamente, esta seria a última etapa para a reinserção na sociedade. Mas todo o sistema está hoje bloqueado: quem sobe as etapas não consegue dinheiro bastante para se sustentar sozinho ou pagar um apartamento. E como quem está em cima não sai, os que estão em baixo não se movem e entram num círculo vicioso.
É o caso de Sebastien Lavry, 33 anos, e Malika Rakab, francesa de origem argelina, de 48 anos. Os dois vieram de outras regiões da França à procura de uma vida melhor em Paris. Hoje os dois têm ocupações — ela, cuidando de pessoas idosas ou doentes, ele fazendo todo tipo de biscate — mas não têm onde dormir.
Conseguiram agora se instalar num centro Emmaus, mas só podem ficar um mês. Depois disso, será um outro centro, ou a rua. Malika conta que chegou a conseguir um apartamento, mas não pôde alugar por causa das exigências: comprovação de salário, garantias. Irritada, ela disse à assistente social da prefeitura, que acompanhava (e dificultava) seu caso: “E então, Tenho direito a quê ? A um túmulo? Ainda assim tenho que pagar, não é?”
Do outro lado da cidade, no centro de acolhimento de urgência Agora, a francesa Isabelle Quieffin limpava o rosto de dois imigrantes pobres, para levantar o moral e melhorar a aparência. Ela, que passou um ano no interior de São Paulo em missão humanitária ao Brasil para ajudar os trabalhadores de cana-de-açúcar, não tem dúvida:
— É melhor ser pobre no Brasil. Pelo menos há a família e mais solidariedade. Aqui se morre de solidão.
Publicado em O GLOBO
Correspondente PARIS
Boulevard Saint Germain, sexta-feira, 11h. No bairro chique de Paris, o termômetro marca um grau centígrado. Um frio de penetrar os ossos. Jean-Claude Patin, francês da Provença, 44 anos, está sentado sobre sua mala, na calçada, encostado à vitrine de uma loja. Vai ficar ali até não agüentar e, ao anoitecer, vai forçar a porta dos prédios para ver qual abre: é a sua chance de dormir no calor. Há quatro meses sem receber salário, o ex-operário de uma empresa de cimento acabou na rua e diz esperar uma decisão do tribunal, na sua briga com o empregador. Hoje integra a leva de novos-pobres de Paris.
— A primeira vez que estendi a mão para pedir dinheiro, chorei. Estou há três semanas na rua. Isso nunca tinha me acontecido. Em Paris, quem tem se salva, quem não tem afunda — diz ele, separado e pai de duas filhas.
Jean-Claude não atingiu o fundo do poço, como os franceses Philippe, Aisha e Manuel Pereira, este último um filho de portugueses que diz trabalhar informalmente no setor de construção. Ao anoitecer, os três se instalaram na calçada da Rue Ancienne Comédie, no mesmo bairro, onde passariam a noite. A poucos metros deles, um homem bem-vestido de meia idade caía duro no chão, aparentemente vítima de uma crise cardíaca. Manuel menosprezou em voz alta o destino do homem, atraindo olhares reprovadores dos passantes. Os três mal articulavam as palavras, de tão alcoolizados. Aisha filosofou:
— Estou desesperada com os seres humanos, com a desvalorização da sociedade... Apesar da minha miséria, jamais fui tão feliz.
Em Paris, 35% dos sem-teto trabalham
Há uma Paris muito diferente por trás da fachada glamourosa. No momento em que o ministro da Economia, Hervé Gaymard, cai do cargo atropelado por um escândalo — alugou um apartamento de 600 metros quadrados por conta do governo, por 14 mil euros por mês, quando é proprietário de cinco imóveis — estatísticas mostram uma crise sem precedentes no setor de habitação: os aluguéis na capital explodiram, os pobres estão sendo expulsos e o governo não investiu o bastante em moradias populares. Este é, segundo Michel Castellan, da organização humanitária Emmaus, um dos fatores por trás do aumento do número de pobres em Paris, junto com desemprego de 10% no país e a precariedade do trabalho.
Paris está cada vez mais burguesa. À medida que as classes média e rica ocupam quarteirões populares — levando os preços dos aluguéis a subirem (de 2000 a 2003, 35%) — aumenta o fenômeno dos trabalhadores pobres que declaram não ter domicílio. Segundo Castellan, 35% das pessoas sem-teto em Paris trabalham.
‘Aqui se morre de solidão’
Um estudo publicado em janeiro pelo Atelier Parisien d’Urbanisme (Apur) revelou que 12% dos moradores da capital (o correspondente a 210 mil pessoas) vivem com menos de 670 euros por mês, isto é, abaixo da linha da pobreza. Hoje a extrema pobreza afeta uma em cada oito casas em Paris. Um terço dos casos é de famílias desintegradas —- mães sustentando sozinhas os filhos, por exemplo. O mesmo percentual vale para famílias estrangeiras. Mas estas, ao menos, têm teto. A psicóloga Beatrice Girard dirige um centro Emmaus que aloja por um período médio de dois anos 23 famílias sem-teto e as ajuda a se reinserirem na sociedade. Ela assiste à degradação. Um estudo da Direction de L’Action Sanitaire et Social mostra que, só em Paris, há 400 mulheres grávidas por ano vivendo na rua.
— Há 10 anos as assistentes sociais nos enviavam 40 pedidos de alojamento. Hoje recebo 1.600 por ano. Mas não há lugar — lamenta Girard.
Organizações humanitárias como a Emmaus se mobilizam para ajudar os pobres em etapas: centros de urgência em pontos-chave da cidade para tirá-los da rua, com ducha, lavagem de roupa, médico, ateliês para aprendizado. Depois, alojamentos intermediários e hotéis onde prolongar a estada. Supostamente, esta seria a última etapa para a reinserção na sociedade. Mas todo o sistema está hoje bloqueado: quem sobe as etapas não consegue dinheiro bastante para se sustentar sozinho ou pagar um apartamento. E como quem está em cima não sai, os que estão em baixo não se movem e entram num círculo vicioso.
É o caso de Sebastien Lavry, 33 anos, e Malika Rakab, francesa de origem argelina, de 48 anos. Os dois vieram de outras regiões da França à procura de uma vida melhor em Paris. Hoje os dois têm ocupações — ela, cuidando de pessoas idosas ou doentes, ele fazendo todo tipo de biscate — mas não têm onde dormir.
Conseguiram agora se instalar num centro Emmaus, mas só podem ficar um mês. Depois disso, será um outro centro, ou a rua. Malika conta que chegou a conseguir um apartamento, mas não pôde alugar por causa das exigências: comprovação de salário, garantias. Irritada, ela disse à assistente social da prefeitura, que acompanhava (e dificultava) seu caso: “E então, Tenho direito a quê ? A um túmulo? Ainda assim tenho que pagar, não é?”
Do outro lado da cidade, no centro de acolhimento de urgência Agora, a francesa Isabelle Quieffin limpava o rosto de dois imigrantes pobres, para levantar o moral e melhorar a aparência. Ela, que passou um ano no interior de São Paulo em missão humanitária ao Brasil para ajudar os trabalhadores de cana-de-açúcar, não tem dúvida:
— É melhor ser pobre no Brasil. Pelo menos há a família e mais solidariedade. Aqui se morre de solidão.
Publicado em O GLOBO
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