2.27.2005

Igreja já gera metade dos empregos da CUT

Programa criado pela Arquidiocese de São Paulo abriu 23,8 mil vagas em 2004 e empregou 9.000, com foco nos mais pobres

FERNANDO CANZIAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Em pouco mais de um ano, a Igreja Católica conquistou na cidade de São Paulo um espaço inédito e significativo no treinamento e busca de empregos para mão-de-obra de baixa qualificação.
Em 2004, seis unidades da igreja espalhadas pela capital empregaram o equivalente a cerca da metade dos empregos criados pela CUT (Central Única do Trabalhador), o maior sindicato da América Latina. A CUT atua há cinco anos na colocação de pessoal.
Por meio dos Ceats (Centros de Atendimento ao Trabalhador), a igreja intermediou a contratação de 9.047 pessoas em 2004 e criou 23.832 vagas novas, captadas em empresas. Como comparação, a CUT empregou cerca de 19 mil trabalhadores no ano passado.
Com uma diferença: boa parte das pessoas atendidas nos Ceats se enquadram na categoria de ""situação de rua", sem-tetos que muitas vezes necessitam de roupas, documentos, apoio psicológico e de um prato de comida.
Criados em meados de 2003 por iniciativa da Arquidiocese de São Paulo, os Ceats funcionam a todo o vapor desde 2004. São financiados, assim como o trabalho da CUT, com dinheiro do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), repassado pelo governo federal.
Em 2004, os Ceats receberam R$ 2 milhões para colocação de pessoal e cursos de requalificação. A CUT, cerca de R$ 4 milhões -o que mostra uma ""produtividade" equivalente entre as duas entidades no uso dos recursos públicos.
Em 2005, a meta do Ceat é tentar dobrar o número de colocados com a obtenção de mais recursos.
Segundo o padre Lício de Araújo Vale, diretor administrativo-financeiro do Ceat, um dos objetivos centrais do trabalho é ""atender a população que ninguém ouve ou representa na área do emprego, muitas vezes até por causa de interesses corporativos".
Uma das unidades do Ceat fica no Brás, onde funcionou, a partir de 1888, a Hospedaria dos Imigrantes, criada para abrigar e triar estrangeiros que chegavam ao Brasil para trabalhar em lavouras.
Hoje, a fachada mais visível do complexo abriga o Museu da Imigração. A parte dos fundos, batizada de Arsenal da Esperança, tem dormitórios para 1.150 camas, um restaurante popular a R$ 1,00, salas para cursos e uma das seis unidades do Ceat na cidade.
Muitos dos moradores de rua que vão ao Arsenal por motivos diversos acabam sendo encaminhados ao Ceat para tentar conseguir um emprego formal.
""Não somos só intermediários na criação de empregos. Fazemos também acompanhamento para tentar ajudar as pessoas a sair de seus problemas", diz dom Claudio Hummes, cardeal arcebispo metropolitano de São Paulo.
Assim como os Ceats, o Arsenal também é administrado pela igreja, por meio do Serviço Missionário Jovem, da Itália, em parceria com o governo do Estado.
Além da captação de vagas em empresas nas regiões onde atuam, os Ceats fazem encaminhamento de seguro-desemprego e dão, em parceria com o Sebrae, cursos de aperfeiçoamento e empreendedorismo. Em 2004, foram formadas 1.087 pessoas.
Ironicamente, tanto os Ceats como a CUT conseguem captar um número de vagas de trabalho quase 60% maior ao que efetivamente acabam preenchendo.
Quase 60% dos desempregados que procuram os Ceats têm até o ensino médio incompleto. Muitos, caracterizados como ""analfabetos funcionais", são rejeitados pelos empregadores. Os salários das vagas, de auxiliar de limpeza, vigilante ou em supermercados, variam de R$ 350 a R$ 700.
João Martins Lima, diretor-executivo do programa da CUT, diz ver ""com bons olhos" o trabalho dos Ceats. ""Mas o importante nessa área é a regionalização, para que os mesmos trabalhadores não acabem procurando ajuda em locais diferentes e encontrem sempre as mesmas vagas."
Padre Lício afirma que a chave do trabalho dos Ceats é a ""capilaridade". ""Nas seis regiões onde atuamos, procuramos sempre vagas nas empresas locais que possam ser preenchidas pelo perfil das pessoas que ajudamos."
Nenhum dos seis Ceats de São Paulo (Belém/Brás, Ipiranga, Lapa, Santana, Santo Amaro e São Miguel Paulista) se sobrepõe às áreas de atuação da CUT.

Padre nega "religião de resultados"

DA REPORTAGEM LOCAL

Questionado se o ingresso da Igreja Católica na área do emprego faz parte de uma estratégia de "religião de resultados" na busca por fiéis, o diretor do Ceat, o padre Lício de Araújo Vale afirma:
"O que buscamos é ser porta-vozes dos mais excluídos. Fazer a defesa incondicional dos mais pobres, que é o que o Evangelho prega." Para dom Claudio Hummes, cardeal arcebispo metropolitano de São Paulo, "a área do trabalho é prioritária para a igreja. Não tem nada a ver com a busca menos honesta da evangelização".
Das 6 unidades do Ceat, 5 funcionam em paróquias da igreja. Segundo o padre Lício, há ocasiões em que as pastorais envolvidas dão "encaminhamento" direto a pessoas que procuram o Ceat.
"Caso, por exemplo, de uma mãe que quer trabalhar e tem um filho envolvido com drogas ou em liberdade assistida", afirma.
Para o professor do Departamento de Sociologia da USP e estudioso da religiosidade brasileira Antônio Flávio Pierucci, ""a Igreja Católica não tem essa esperteza e malícia, que seriam até saudáveis, de fazer um projeto desses em busca de mais fiéis".
"A Igreja Católica não é calculista a esse ponto e tem algo que os protestantes não têm: uma orientação para os pobres, para essa parte do estrato social "escolhido por Deus" que deve ser o objeto do bem", afirma Pierucci.
Para o especialista, nesse sentido as igrejas protestantes vão na direção oposta à da Igreja Católica. ""Os protestantes não perdem tempo com mendigos, algo que eles consideram até abominável", afirma o professor da USP.
No caso das igrejas pentecostais, a ""religião de resultados", segundo Pierucci, ocorre ""de dentro para fora da cabeça dos fiéis".
""Os pentecostais colocam na cabeça das pessoas que, se mudarem de vida, tudo vai mudar. Isso de fato acontece. O sujeito pára de beber, de jogar e de ser vagabundo, e tudo acaba melhorando, inclusive sua situação financeira. É um fenômeno em que a pessoa se limpa, se higieniza", afirma.
Para o historiador norte-americano Kenneth Serbin, da Universidade de San Diego e especialista em história do Brasil e relações entre Estado e igreja, a ""parceria" dos católicos com o governo ""cabe perfeitamente no padrão histórico dessa relação".
""A grande novidade é atuar na área de criação de empregos. E também não devemos ignorar que há hoje um novo contexto em que a igreja perde fiéis."
""Um trabalho como esse pode melhorar a imagem da igreja perante seus fiéis, principalmente em uma cidade como São Paulo, onde há muitos templos evangélicos. Nesse contexto, é importante que a Igreja Católica continue a ser vista", diz Serbin. (FCZ)
FOLHA DE SAO PAULO