Imigrantes são submetidos à escravidão em SP
Brasil combate servidão no campo, mas é negligente com a urbana
Todd Benson
Em São Paulo
Paulo Fridman/The New York Times
Todd Benson
Em São Paulo
Paulo Fridman/The New York Times
Boliviana tenta encontrar trabalho nas confecções do centro da cidade
O governo do primeiro presidente da classe trabalhadora do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, libertou mais trabalhadores escravos do que nos oito anos anteriores. O dado impressiona porque, desde que Lula anunciou um plano ambicioso para erradicar o trabalho forçado até 2006, passaram-se menos de dois anos.
Os inspetores do governo federal aumentaram as batidas policiais em fazendas, operações de extração de madeira e minas que atraem à situação de servidão camponeses brasileiros pobres e freqüentemente analfabetos.
Entretanto, o governo tem feito pouco para impedir os severos abusos de trabalho em São Paulo, o centro industrial do Brasil, onde milhares de imigrantes ilegais da Bolívia e de outros países vizinhos vivem e trabalham em confecções de pequena escala, em condições que grupos de direitos humanos e um número crescente de autoridades dizem ser comparáveis a escravidão moderna.
"É certamente admirável o governo ter criado uma força-tarefa para abolir a escravidão nas fazendas no interior do país, mas ter esquecido de olhar para a situação nas cidades", disse Roque Pattussi, um padre católico cuja congregação no centro de São Paulo é composta em grande parte de bolivianos e outros imigrantes de língua espanhola.
"De certa forma, o problema aqui é ainda pior do que no interior", ele acrescentou. "Pelo menos no interior você pode respirar ar puro. Estas pessoas aqui na cidade estão enfiadas em porões lotados, realizando continuamente os mesmos movimentos repetitivos em uma máquina de costura. Elas raramente vêem a luz do dia."
Apesar da dificuldade em se obter números oficiais, a Igreja Católica estima que entre 50 mil e 60 mil bolivianos estejam vivendo em São Paulo, a maioria em bairros de imigrantes como Bom Retiro, Brás e Pari, na divisa norte do centro da cidade.
A maioria destes imigrantes, diz a Igreja, trabalha nas cerca de 8 mil confecções destas áreas, juntamente com uns poucos milhares de paraguaios e peruanos. Muitas destas confecções não apresentam indicações e ficam escondidas do olhar público para evitar serem detectadas pela polícia.
Promessas vazias
Como seus pares escravos brasileiros nas áreas rurais remotas, os operários de fábricas costumam ser atraídos para a servidão com falsas promessas de bons salários e benefícios. Mas devido à sua condição ilegal no Brasil, os imigrantes não costumam protestar quando seus empregadores renegam suas promessas, os tornando presas fáceis para os donos de fábricas em busca de mão-de-obra barata.
Segundo promotores federais e grupos de direitos, a maioria dos trabalhadores começa a trabalhar às 7 horas da manhã e prossegue até a meia-noite, com um intervalo curto para o almoço e outro para o jantar. Em média, os trabalhadores ganham 40 centavos por cada peça de roupa que montam. Estes itens costumam ser vendidos nas lojas da região por até R$ 60. Se os trabalhadores danificam uma peça, eles devem pagar o preço de varejo do item, não os 40 centavos que custou.
Em casos extremos, os trabalhadores ficam presos em um ciclo vicioso de dívida-servidão, trabalhando por períodos longos sem pagamento para cobrir o custo da viagem para o Brasil.
Foi isto o que aconteceu com Juana Velasco, uma boliviana de 37 anos que deixou para trás seu único filho em La Paz, há dois anos, em busca da promessa de um emprego de costureira com remuneração decente em São Paulo. Ela disse que ficou sem receber por mais de um ano, trabalhando 17 horas por dia com outros 14 imigrantes bolivianos em um porão apertado que também servia como residência improvisada.
"Quando eu cheguei aqui, o proprietário tomou meu passaporte e disse que eu só o receberia de volta quando terminasse de pagar minha dívida", disse Juana, acrescentando que relutou em procurar a polícia por temer que seria deportada por trabalhar ilegalmente no país.
Quando ela finalmente foi paga, o salário mensal equivalente a cerca de US$ 65 era bem menor do que os US$ 100 por mês que, segundo ela, lhe foi prometido quando ela partiu da Bolívia.
"Todo mundo lá em casa dizia que era possível ganhar muito dinheiro aqui, mas eu não consegui economizar nada", disse Juana, que deixou o emprego e está grávida de seu segundo filho. Ele conseguiu recuperar seu passaporte e agora está tentando voltar para a Bolívia.
Exploração étnica
Enquanto no interior a prática de trabalho forçado tende a envolver apenas brasileiros, em São Paulo o debate em torno das condições de trabalho transcorrem em um território étnico. Os promotores e os grupos de direitos, por exemplo, dizem que as confecções costumam ser dirigidas por gerentes bolivianos que trabalham para lojistas coreanos.
"Basicamente, o que temos é um grupo imigrante explorando outro", disse Vera Lúcia Carlos, uma promotora federal que esteve investigando as práticas de trabalho nas confecções da cidade, no ano passado. "Os bolivianos estão na linha de frente, fazendo todo o trabalho sujo. Mas são os coreanos que comandam toda a operação."
Segundo a Associação Brasileira dos Coreanos, que representa a comunidade coreana aqui, cerca de 40 mil a 50 mil imigrantes coreanos vivem em São Paulo, a maioria trabalhando na indústria do vestuário. O presidente da associação, Chul Un Kim, se recusou a comentar as acusações de trabalhos forçados envolvendo imigrantes bolivianos, assim como vários lojistas coreanos na bairro especializado da cidade.
Mas um advogado da associação, que falou sob a condição de não ser identificado, disse que as acusações eram injustas, argumentando que os coreanos são meros lojistas e que as práticas de trabalho nas fábricas são de responsabilidade dos bolivianos que supervisionam os locais. Tais supervisores, que tendem a se manter tão discretos quanto suas fábricas, não puderam ser contatados para comentários ou se recusaram a discutir o assunto.
Escravidão urbana
O Brasil foi o último país nas Américas a abolir a escravidão, em 1888. Atualmente a lei classifica o trabalho como "semelhante à escravidão" quando o trabalhador é submetido a "trabalhos forçados" ou a "dia de trabalho exaustivo" em "condições degradantes". Além de serem multados, os infratores podem pegar de dois a oito anos de cadeia.
A repressão do governo ao trabalho forçado libertou mais de 7 mil trabalhadores escravizados nas áreas rurais desde que Lula --um ex-líder sindical que já trabalhou como engraxate-- assumiu o governo. Mas a polícia realizou batidas em apenas um punhado de confecções.
Em um recente caso em agosto, um casal coreano foi preso por empregar 11 imigrantes --a maioria bolivianos, mas também paraguaios e peruanos-- em um porão em São Paulo com ventilação mínima. Os trabalhadores foram libertados, mas como não tinham vistos de trabalho, eles foram multados em R$ 300 cada e ordenados a deixar o país.
Enquanto isso, os proprietários foram multados em R$ 2.483 por cada trabalhador e estão aguardando julgamento por acusações criminais de contratação de imigrantes ilegais.
Funcionários do Ministério do Trabalho reconheceram que a campanha antiescravidão do governo se concentrou quase exclusivamente na vasta fronteira agrícola da Amazônia, e disseram que os abusos nas áreas urbanas são mais bem resolvidos pela polícia e promotores.
Os promotores federais disseram, entretanto, que carecem dos recursos dos inspetores do governo que investigam os abusos no interior, e assim dependem dos próprios trabalhadores, que freqüentemente relutam em denunciar seus empregadores.
Os promotores também se queixam que seus esforços para combater o trabalho forçado na cidade tem sido atrapalhado pelas rígidas leis de imigração do Brasil, que dificultam a obtenção de permissões de trabalho pelos imigrantes.
"Infelizmente, nós dependemos de queixas formais, então não há muito o que fazer se alguém não se apresenta para denunciar a situação", disse Cristina Ribeiro Brasiliano, uma promotora federal que está investigando as práticas de trabalho nas confecções.
"Estas pessoas não pensam em si mesmas como escravos", disse a promotora Brasiliano. "Elas querem trabalhar, mas muitas delas não percebem que as condições nas quais trabalham são degradantes e contra a lei."
Tradução: George El Khouri Andolfato
The New York Times
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