5.31.2004

François Chesnais: Ruptura radical" é a saída para o Brasil

Para acadêmico, só uma mudança como a promovida em Cuba poderia diminuir desigualdade no país"

CÍNTIA CARDOSO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nem neoliberalismo nem "terceira via". A solução para o Brasil deve ser o rompimento com o modelo atual e a adoção de um sistema econômico nos moldes cubanos, avalia o professor emérito da Universidade Paris XIII, François Chesnais, 69."Se houvesse uma mudança política como a que ocorreu em Cuba nos anos 60, o novo sistema seria invencível e portador de formas avançadas de democracia", avalia o acadêmico francês marxista. Para Chesnais, a única "política de esquerda" aceitável é a da "ruptura radical".Leia a seguir, a entrevista do professor concedida à Folha.

Folha - O governo Lula foi eleito sob a promessa de renovação. Após um ano e meio, o modelo econômico permanece inalterado em relação à gestão anterior. O sr acredita em outra alternativa?

François Chesnais - Eu não gosto da palavra modelo, mas existe a possibilidade de organizar a sociedade de um modo diferente. Para isso, é preciso partir de uma concepção de política diferente da que vemos hoje. Eu vi os resultados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia Estatística] e eles mostram uma grande desigualdade no Brasil. Um partido político só pode mudar esse estado de coisas convocando [o apoio] dos operários, dos desempregados, dos agricultores e dos excluídos.Por exemplo, quando Fernando Henrique Cardoso convidou Lula para a reunião com o FMI [Fundo Monetário Internacional], há dois anos, Lula deveria ter comparecido, escutado e, em seguida, deveria ter voltado para São Paulo para explicar para toda a população, no maior estádio da cidade, sobre as exigências. Eu acho que eles teriam apoiado o Lula em uníssono.Ele deveria ter perguntado se a população estava preparada para resistir com ele. Para mudar, acredito que o ponto de partida não é econômico, mas político.

Folha - Mesmo Lula, que tem uma história de luta sindical e que já defendeu idéias semelhantes, parece ter mudado de opinião. Não é anacrônico defender essas idéias hoje?

Chesnais - Eu acho que uma eleição que leva ao poder um partido que se chama de "dos trabalhadores" deve ser seguida pela implementação da moratória da dívida, de um controle de capitais que deveria ser aplicado pelos funcionários dos bancos e pela ocupação de fábricas e de grandes propriedades de terra. São atos muito radicais, considerados anacrônicos, mas nós conhecemos os resultados do caminho que tem sido adotado nos últimos 20 anos.Logo, o que é apresentado como anacrônico, não o é. Claro que é uma via arriscada, um salto no desconhecido, mas, diante do grau atual de crise, de destruição e de paralisia da sociedade, uma inversão da essência da visão de ação política se impõe. A necessidade de engajar o povo é, talvez, a reedição de uma idéia velha. Mas eu vejo que, no único país no qual esse gênero de relação política foi criado -em Cuba nos anos 60-, há um grande apoio populacional aos governantes, apesar de ser um país pequeno, submetido a graves pressões econômicas.

Folha - Mas o Brasil tem características muito diferentes das de Cuba. Cuba também tem a questão dos direitos humanos...

Chesnais - Claro, mas a comparação ainda me faz ser favorável à ruptura. No caso do Brasil, nós não falamos de uma pequena ilha com 5 ou 6 milhões de habitantes. Falamos de um país continental muito rico, com 160 milhões de habitantes. Se houvesse uma mudança política como a que houve em Cuba nos anos 60, o novo sistema seria invencível e portador de formas avançadas de democracia. Basta apenas ir falar nas universidades e ir aos acampamentos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] para ter certeza disso.

Folha - O quadro hoje é muito diferente daquele dos anos 60. O mundo mudou, e o Brasil tem uma grande dependência dos fluxos de capital estrangeiros. Sem esses fluxos, o país pode afundar, não?

Chesnais - Não. O Brasil é um país que conheceu um desenvolvimento industrial, que tem uma classe média educada e é um país bem pouco dependente de importações. O número de produtos que não podem ser produzidos aqui é muito pequeno.Logo, para um país como o Brasil não há nenhum risco de afundamento econômico. O capital que veio para o Brasil ao longo desses 10 anos foi, sobretudo, um capital que veio comprar empresas [no começo da era das privatizações] e um capital de portfólio, que veio se abrigar em títulos da dívida pública e em ações de empresas brasileiras.É um capital que vem para aproveitar o serviço da dívida e para fazer um bombeamento dos recursos brasileiros para o exterior. Não temos necessidade desse tipo de capital. Temos que nos livrar dele.

Folha - Os fluxos de capital estrangeiros ajudaram a estabilização do início do Plano Real, a redução das taxas de inflação... O sr. não vê nenhum benefício no modelo atual?

Chesnais - Onde estão os benefícios do neoliberalismo para a maior parte da população? Para os mais pobres? Nós vemos que os pobres se tornam cada vez mais pobres. O número de pessoas no Brasil que se beneficia no modelo neoliberal é muito pequeno. É, no máximo, 15% da população. Não podemos continuar a fazer políticas que beneficiem só essa parcela. Para aqueles que têm necessidade de mudanças, é preciso explicar que a batalha será muito dura e que não poderá ser vencida sem engajamento.

Folha - Como sair desse modelo de globalização? Voltar à "era Vargas"?

Chesnais - Não, a minha posição não é a de defesa do modelo de Getúlio Vargas. É muito mais radical. Proponho estabelecer, numa escala de um país continental e rico como o Brasil, um modelo de apropriação social, de despesas planificadas segundo a ordem das necessidades mais urgentes. Esse modelo estabeleceria as condições para a criação de uma democracia que não conheceria os mesmos problemas enfrentados por Cuba. Uma boa parte das pessoas que participaram da formação do PT ainda está ativa e tem grande experiência política. Temos todos os elementos para uma ruptura vitoriosa no Brasil.

Folha - E o que viria após a ruptura? Que modelo de Estado seria formado a partir dela?

Chesnais - Certamente não seria um Estado nos moldes soviéticos. Esse novo Estado não teria como objetivo desenvolver uma burocracia pública muito grande e poderosa. Seria um Estado com o menor número de pessoal possível. É uma idéia totalmente nova que precisará de bastante criatividade. Do ponto de vista econômico, é fundamental o controle de recursos sob um sistema de planificação leve. Alguns mecanismos da economia de mercado seriam mantidos, mas o planejamento econômico seria planificado. As questões macroeconômicas seriam subordinadas às prioridades sociais do governo.

Folha - Como fazer avançar uma ruptura tendo em vista que o Brasil tem acordos estabelecidos com outros países?Chesnais - Todo acordo pode ser revogado. O único desafio é o de explicar bem, para as pessoas para quem se está governando, quais são os objetivos. A única política de esquerda é a da ruptura.

Folha - O governo Lula parece longe de caminhar para esse tipo de ruptura. Entre a ruptura radical e o modelo neoliberal, há uma "terceira via" possível?

Chesnais - Não. Não existe. A nova política seria endossada pelo apoio popular e pela intervenção direta das pessoas no processo e no entusiasmo das novas gerações. Nesse ponto, ela seria uma ruptura com o "socialismo real" e com um regime chinês. Logo, seria um caminho novo. Essa ruptura poderia se dar com calma, a não ser que as classes ricas se oponham e usem a violência. Não há uma via intermediária. A administração Lula prometeu uma via intermediária com uma primeira fase mais difícil e, depois, o crescimento. Mas um crescimento para quem? Quando se mantém um salário mínimo tão baixo, não dá para trazer crescimento para os mais pobres.

Folha - O senhor está decepcionado com o governo Lula?

Chesnais - Eu não estou mais decepcionado. Eu analiso. Meu momento de decepção é muito anterior. Ele data de julho de 2002, quando Lula assinou um acordo com o FMI junto com os outros candidatos. Desde então, não tenho mais nem decepções nem surpresas. O que vejo apenas reforça a minha convicção de que não existe "terceira via" possível.

FSP, 31/05/2004