Ricardo Antunes: ''Vejo derrotas do PT nas eleições''
Entrevista / Ricardo Antunes
Sônia Araripe e Rodrigo de Almeida
Nome de destaque no bloco que viu o Partido dos Trabalhadores nascer e hoje está desencantado, o cientista político e professor da Universidade de Campinas Ricardo Antunes está desenvolvendo uma nova pesquisa. Com a autoridade de quem viveu a mudança do partido nos seus intestinos, Antunes quer entender melhor o que vem se passando com o PT desde que assumiu o governo. “Não há dúvidas. O PT se desvertebrou”.
Ele está na Itália, a convite da Universidade de Roma, para explicar lá fora sua tese. Antunes entende que era preciso buscar alianças para governar, mas lamenta que Luiz Inácio Lula da Silva tenha procurado apoio justamente na ala política mais conservadora. O professor critica o modelo econômico – “é a financeirização da economia” – e acredita que o enfrentamento recente do governo argentino de Néstor Kirchner em relação ao Fundo Monetário Internacional é um bom exemplo.
Aos 51 anos, o paulista confessa que se sente desiludido com o sonho de ver um partido trabalhista no poder. “Esperávamos um outro governo.” E prevê tempos difíceis, com direito a derrotas, nas próximas eleições municipais para o PT.
Que avaliação o senhor faz do governo Lula?
- Transcorridos um ano e alguns meses do governo Lula, o balanço é muito decepcionante. Nas políticas econômica, social, dos transgênicos, da Previdência, em relação aos juros e ao sistema financeiro, em todas as questões centrais, é a negação da programática defendida pelo PT nos últimos 24 anos.
Qual a raiz dessa decepção? Está na coalizão que o governo construiu no Congresso?
- O elemento explicativo não é uno. São vários. Um: a década de 90 transformou profundamente o país. Basta dizer que 60% da classe trabalhadora economicamente ativa estão informalizados. O setor produtivo estatal foi todo privatizado. A financeirização da economia foi muito intensa, num processo de desindustrialização. Paralelamente foi uma década muito dura para os partidos de esquerda e socialistas. Tudo isso compõe o chão social da mudança. Dois: o PT fez um trânsito forte em sua política, de um partido vinculado às lutas sociais para um partido calibrado segundo o termômetro da institucionalidade. A cada ano, o PT passou a se preocupar com a eleição seguinte: para vereador, para deputado, para governador, para presidente. Tornou-se um partido dentro da ordem, como os demais. Três: para chegar ao poder, depois de três derrotas, o PT fez a avaliação - na minha opinião equivocada - de que deveria ampliar a política de alianças de forma ilimitada. Portanto, a vitória de 2002 perdeu sua coluna e diluiu-se a tal ponto que hoje o PT depende de José Sarney, de ACM, de Jáder Barbalho, o velho esquema de sustentação que existe no Parlamento brasileiro.
Mas para governar não é preciso fazer alianças?
- O PT não está errado em fazer alianças. O problema é que o partido compreendeu que deveria chegar ao poder diluindo seu programa, desvertebrando sua estrutura e se aliando com quem domina este país há 500 anos. Ao fazer isto, passou a defender, a partir de 2002, o oposto do que pregou durante 24 anos. Isto é que é apavorante e o enigma do governo do PT. A sua política no governo é antípoda à sua política na oposição. É legítimo a um partido se aliar quando o ''aliar-se'' é parte da concretização e das possibilidades da sua vitória política para implementação do seu ideário. O PT não fez isso.
Qual o peso da ''herança maldita'' que o PT atribui ao governo FH?
- A chamada herança maldita é verdadeira. A década de 90 foi a desertificação neoliberal. A Carta aos Brasileiros, feita antes das eleições de 2002, e o acordo do governo Fernando Henrique com o FMI atrelavam-se à política econômica do governo seguinte. Tanto que foi condição imposta pelo FMI que os candidatos à Presidência se manifestassem publicamente se concordavam com o acordo assinado naquele fim de mandato. Néstor Kirchner herdou uma herança mais nefasta na Argentina, que levou ao limite o neoliberalismo e foi ao fundo do poço. Mas impôs limites ao FMI. A Argentina era talvez o único país na América Latina com certa herança de conquistas sociais, advindas do peronismo, que o distinguiam do restante da América Latina e que foram solapadas. Ainda assim, o governo Kirchner - eleito sem segundo turno - iniciou uma política de dizer para o FMI: ''Essa política de o país produzir para sucção externa, para pagar juros da dívida interna e externa, está minguando as condições do povo.'' Se Kirchner soube fazer isso em condições mais difíceis, o que se esperava do governo Lula é que ele não fosse um paladino do FMI.
O sr. acredita em um plano B?
- Acho que o governo Lula não tem plano B. Ninguém mostra durante um ano e meio, o mais aderente de todos, para depois tirar outra carta do baralho e dizer ''agora sou de oposição''. O PT comprometeu nesse tempo os quatro anos do seu governo. O máximo que pode ocorrer neste momento é um pequeno crescimento, mas para isso não é preciso oposição. Convenhamos, Serra tinha como proposta o crescimento, assim como Ciro.
Muitos analistas apontam a dificuldade atual dos Estados nacionais em gerir seus próprios rumos. Em um país sem recursos, é ainda mais complicado. É possível promover qualquer ruptura?
- Concordo com essa análise. O Estado nacional está solapado pelo sistema global do capital. Mas se a tese de que não há alternativa fosse verdadeira, não faria mais parte das lutas sociais da esquerda a luta pela Presidência da República. Como não penso isso, acho que o Estado nacional teve seu poder muito abalado. Mas olho para Brasil, México, Rússia, China, Argentina, Venezuela, Índia e vejo um conjunto de países que não são de Terceiro Mundo sem importância, mas não são potências. O governo Lula precisa ter esses países como aliados para exercitar um confronto com o sistema financeiro internacional, exercendo, inclusive, um papel de liderança nesse processo. Lula escolheu o outro caminho. Ele tinha adquirido e consolidado um capital político e social muito forte para dizer que desse jeito não dá. Subir ao poder, roubar a agenda do Fernando Henrique e imaginar que isso agradaria a seu eleitorado não dá. Não há Duda Mendonça nem manipulação propagandista de tipo nenhum que dê jeito. Lula escolheu caminhar numa linha tênue, arriscada, de estar bem com o FMI e com a política externa norte-americana e paralelamente ser visto como um líder do Terceiro Mundo. Não vai dar certo.
É por ingenuidade, falta de conhecimento ou simplesmente uma estratégia equivocada?
- É difícil uma resposta conclusiva. O PT chegou agora a outro projeto de poder, de governo. É um projeto descabido, se pensarmos que é uma proposta da esquerda. É compatível com os projetos de centro e direita. O estranho - que fez com que (o sociólogo) Chico de Oliveira falasse na figura do ornitorrinco - é que a esquerda passe a ser portadora disso. Por um lado, o PT tem um projeto novo, uma aliança entre o mundo financeiro com o sindicalismo de negócios. E busca agradar à burocracia sindical, que chegou à mina que são os fundos públicos, com o mundo financeiro que quer a privatização da coisa pública. O PT não se preparou para resistir a esse capitalismo. Além disso, fez todas as concessões e alianças para chegar ao poder. É um poder que não tem mais a força do passado para que se possa utilizar a serviço da reconstituição da dignidade do brasileiro.
A agenda conservadora foi comum a muitos partidos de esquerda ao chegar ao poder. Foi o caso do partido socialista francês, o partido trabalhista inglês. Esse caminho rumo ao conservadorismo é inexorável?
- Inexorável não, tendência sim. É quase como se dissesse que tem uma jaula de ferro forte. Então, das duas uma: ou vou armado com maçarico para abrir essas grades e soltar a potência das lutas sociais ou fico prisioneiro delas. Na década de 90, o PT resistiu ao neoliberalismo, participou das lutas sociais contra a privatização, a financeirização da economia, os acordos do FMI, a Alca, mas foi pouco a pouco tornando-se menos vinculado às causas sociais e cada vez mais um partido político-eleitoral e institucional. Essa forma de partido meramente institucional e eleitoral está desgastada. Ela chega ao poder e age: se é esquerda, faz o que a direita gosta, e se é direita, faz o que a direita quer. Mas vale a pena lembrar que tanto com Mitterrand e Jospin, na França, Aznar na Espanha, para não falar do caso mais grotesco que é o de Blair na Inglaterra, com muita freqüência essa dita esquerda que tem chegado ao poder tem sido mais competente para desmontar e destruir as lutas e os direitos sociais. Porque, ao sair das lutas sociais e migrar para o aparelho de Estado, ela desorganiza parte das lutas sociais.
Teremos eleição este ano e em 2006. O PT tem um projeto de reeleição. Que impacto tudo isso pode ter nas urnas?
- O PT palaciano sob a batuta do Duda Mendonça (publicitário), o PT ''dudiano'', fez uma opção: ''Não me interessam mais os núcleos organizados que mantiveram as atividades do PT nos anos 80 e 90.'' Esses núcleos eram os trabalhadores rurais, os funcionários públicos e o operariado urbano e rural, além da classe média. Era o mundo ampliado da classe trabalhadora, que deu vitalidade, força, pujança e dinamismo para o PT nos anos 80 e 90. A política atual não é mais essa, se converteu num grande negócio. Os bancos, sim, devem estar batendo palmas. Devem estar se perguntando por que não puseram o Lula antes. Por outro lado, é evidente que essa política é de risco. Perder essa base social sem ampliar a outra é um risco muito grande. Antevejo, e é só uma intuição, derrotas muito grandes nas próximas eleições, porque o eleitorado vai procurar a coerência do partido.
Mas a oposição também não está com uma proposta diferente. E tem o fardo dos maus resultados do passado.
- A oposição, PSDB e PFL, perdeu a eleição de 2002. Os dois partidos, que sustentaram o governo FH, ficaram um ano completamente estupefatos com o continuísmo do governo Lula no que diz respeito à economia. Mas o episódio Waldomiro deu a percepção de que há, muito na intimidade do núcleo do poder, uma abertura para a corrupção. Foi o trunfo que as oposições esperavam. Imagina nós ouvirmos a essa altura o Malan, o Mendonça de Barros, o próprio Fernando Henrique dizerem que Lula está descuidando da dimensão social? Em que mundo estamos? Esse quadro cria uma sensação muito estranha, e a oposição percebeu que, na política, o PT também é igual aos demais. O PT criticava a corrupção do PFL, do governo FH, mas no primeiro ano, no núcleo do poder, deu mostras de que nem tudo é brandura, nem tudo é anticorrupção no espaço do PT. Para não falar do problema de Santo André e de vários outros problemas que maculam um pouco a trajetória do PT. Isso fez com que a oposição partisse de uma surpresa inicial para um momento atual de puro escárnio, de pura crucificação. Hoje é o momento de dizer assim: vamos derrotar o PT nas eleições municipais para preparar a sucessão. Isso implode o projeto que o PT tinha da reeleição.
Qual o seu sentimento em relação ao PT? É de decepção? Frustração?
- O PT, quer a gente goste mais ou goste menos, foi a mais ousada tentativa de um projeto de esquerda, de força e vitalidade. No meu entender, perdeu essa força e essa vitalidade, e hoje é um partido que não pode mais ser compreendido como um partido de esquerda, se se imagina um partido de esquerda com cara socialista, com desenho contrário à ordem atual. E nesse sentido o PT é o partido da ordem. Nós tínhamos a expectativa de que o governo Lula resgatasse a dignidade do povo brasileiro, que resgatasse a profunda dívida social que o Estado brasileiro tem com nossas classes trabalhadoras. É triste constatar que, no tempo transcorrido deste governo, a dívida social não teve num ponto sequer esse pagamento. E ainda está se ampliando.
JORNAL DO BRASIL em 19 de abril de 2004
Sônia Araripe e Rodrigo de Almeida
Nome de destaque no bloco que viu o Partido dos Trabalhadores nascer e hoje está desencantado, o cientista político e professor da Universidade de Campinas Ricardo Antunes está desenvolvendo uma nova pesquisa. Com a autoridade de quem viveu a mudança do partido nos seus intestinos, Antunes quer entender melhor o que vem se passando com o PT desde que assumiu o governo. “Não há dúvidas. O PT se desvertebrou”.
Ele está na Itália, a convite da Universidade de Roma, para explicar lá fora sua tese. Antunes entende que era preciso buscar alianças para governar, mas lamenta que Luiz Inácio Lula da Silva tenha procurado apoio justamente na ala política mais conservadora. O professor critica o modelo econômico – “é a financeirização da economia” – e acredita que o enfrentamento recente do governo argentino de Néstor Kirchner em relação ao Fundo Monetário Internacional é um bom exemplo.
Aos 51 anos, o paulista confessa que se sente desiludido com o sonho de ver um partido trabalhista no poder. “Esperávamos um outro governo.” E prevê tempos difíceis, com direito a derrotas, nas próximas eleições municipais para o PT.
Que avaliação o senhor faz do governo Lula?
- Transcorridos um ano e alguns meses do governo Lula, o balanço é muito decepcionante. Nas políticas econômica, social, dos transgênicos, da Previdência, em relação aos juros e ao sistema financeiro, em todas as questões centrais, é a negação da programática defendida pelo PT nos últimos 24 anos.
Qual a raiz dessa decepção? Está na coalizão que o governo construiu no Congresso?
- O elemento explicativo não é uno. São vários. Um: a década de 90 transformou profundamente o país. Basta dizer que 60% da classe trabalhadora economicamente ativa estão informalizados. O setor produtivo estatal foi todo privatizado. A financeirização da economia foi muito intensa, num processo de desindustrialização. Paralelamente foi uma década muito dura para os partidos de esquerda e socialistas. Tudo isso compõe o chão social da mudança. Dois: o PT fez um trânsito forte em sua política, de um partido vinculado às lutas sociais para um partido calibrado segundo o termômetro da institucionalidade. A cada ano, o PT passou a se preocupar com a eleição seguinte: para vereador, para deputado, para governador, para presidente. Tornou-se um partido dentro da ordem, como os demais. Três: para chegar ao poder, depois de três derrotas, o PT fez a avaliação - na minha opinião equivocada - de que deveria ampliar a política de alianças de forma ilimitada. Portanto, a vitória de 2002 perdeu sua coluna e diluiu-se a tal ponto que hoje o PT depende de José Sarney, de ACM, de Jáder Barbalho, o velho esquema de sustentação que existe no Parlamento brasileiro.
Mas para governar não é preciso fazer alianças?
- O PT não está errado em fazer alianças. O problema é que o partido compreendeu que deveria chegar ao poder diluindo seu programa, desvertebrando sua estrutura e se aliando com quem domina este país há 500 anos. Ao fazer isto, passou a defender, a partir de 2002, o oposto do que pregou durante 24 anos. Isto é que é apavorante e o enigma do governo do PT. A sua política no governo é antípoda à sua política na oposição. É legítimo a um partido se aliar quando o ''aliar-se'' é parte da concretização e das possibilidades da sua vitória política para implementação do seu ideário. O PT não fez isso.
Qual o peso da ''herança maldita'' que o PT atribui ao governo FH?
- A chamada herança maldita é verdadeira. A década de 90 foi a desertificação neoliberal. A Carta aos Brasileiros, feita antes das eleições de 2002, e o acordo do governo Fernando Henrique com o FMI atrelavam-se à política econômica do governo seguinte. Tanto que foi condição imposta pelo FMI que os candidatos à Presidência se manifestassem publicamente se concordavam com o acordo assinado naquele fim de mandato. Néstor Kirchner herdou uma herança mais nefasta na Argentina, que levou ao limite o neoliberalismo e foi ao fundo do poço. Mas impôs limites ao FMI. A Argentina era talvez o único país na América Latina com certa herança de conquistas sociais, advindas do peronismo, que o distinguiam do restante da América Latina e que foram solapadas. Ainda assim, o governo Kirchner - eleito sem segundo turno - iniciou uma política de dizer para o FMI: ''Essa política de o país produzir para sucção externa, para pagar juros da dívida interna e externa, está minguando as condições do povo.'' Se Kirchner soube fazer isso em condições mais difíceis, o que se esperava do governo Lula é que ele não fosse um paladino do FMI.
Mas a Argentina está pagando um preço alto. Há saída alternativa?
- Vamos por partes. O governo Lula cometeu outro erro básico deste seu um ano e meio: quando eleito poderia ter negociado com o sistema financeiro internacional, com 53 milhões de votos lhe dando ancoragem. Não fez isso. Lula quis se mostrar como o mais servil dos servis. Quis mostrar um encanto maior do que o governo FH tinha. Hoje, vemos sua base social em processo de erosão. As últimas pesquisas mostram que mais de 50% dizem que Lula está no caminho errado. A figura do presidente também sofre esse processo de erosão. Corremos o risco de ver o governo perder completamente a base social. Como o apoio do funcionalismo público.
O sr. acredita em um plano B?
- Acho que o governo Lula não tem plano B. Ninguém mostra durante um ano e meio, o mais aderente de todos, para depois tirar outra carta do baralho e dizer ''agora sou de oposição''. O PT comprometeu nesse tempo os quatro anos do seu governo. O máximo que pode ocorrer neste momento é um pequeno crescimento, mas para isso não é preciso oposição. Convenhamos, Serra tinha como proposta o crescimento, assim como Ciro.
Muitos analistas apontam a dificuldade atual dos Estados nacionais em gerir seus próprios rumos. Em um país sem recursos, é ainda mais complicado. É possível promover qualquer ruptura?
- Concordo com essa análise. O Estado nacional está solapado pelo sistema global do capital. Mas se a tese de que não há alternativa fosse verdadeira, não faria mais parte das lutas sociais da esquerda a luta pela Presidência da República. Como não penso isso, acho que o Estado nacional teve seu poder muito abalado. Mas olho para Brasil, México, Rússia, China, Argentina, Venezuela, Índia e vejo um conjunto de países que não são de Terceiro Mundo sem importância, mas não são potências. O governo Lula precisa ter esses países como aliados para exercitar um confronto com o sistema financeiro internacional, exercendo, inclusive, um papel de liderança nesse processo. Lula escolheu o outro caminho. Ele tinha adquirido e consolidado um capital político e social muito forte para dizer que desse jeito não dá. Subir ao poder, roubar a agenda do Fernando Henrique e imaginar que isso agradaria a seu eleitorado não dá. Não há Duda Mendonça nem manipulação propagandista de tipo nenhum que dê jeito. Lula escolheu caminhar numa linha tênue, arriscada, de estar bem com o FMI e com a política externa norte-americana e paralelamente ser visto como um líder do Terceiro Mundo. Não vai dar certo.
É por ingenuidade, falta de conhecimento ou simplesmente uma estratégia equivocada?
- É difícil uma resposta conclusiva. O PT chegou agora a outro projeto de poder, de governo. É um projeto descabido, se pensarmos que é uma proposta da esquerda. É compatível com os projetos de centro e direita. O estranho - que fez com que (o sociólogo) Chico de Oliveira falasse na figura do ornitorrinco - é que a esquerda passe a ser portadora disso. Por um lado, o PT tem um projeto novo, uma aliança entre o mundo financeiro com o sindicalismo de negócios. E busca agradar à burocracia sindical, que chegou à mina que são os fundos públicos, com o mundo financeiro que quer a privatização da coisa pública. O PT não se preparou para resistir a esse capitalismo. Além disso, fez todas as concessões e alianças para chegar ao poder. É um poder que não tem mais a força do passado para que se possa utilizar a serviço da reconstituição da dignidade do brasileiro.
A agenda conservadora foi comum a muitos partidos de esquerda ao chegar ao poder. Foi o caso do partido socialista francês, o partido trabalhista inglês. Esse caminho rumo ao conservadorismo é inexorável?
- Inexorável não, tendência sim. É quase como se dissesse que tem uma jaula de ferro forte. Então, das duas uma: ou vou armado com maçarico para abrir essas grades e soltar a potência das lutas sociais ou fico prisioneiro delas. Na década de 90, o PT resistiu ao neoliberalismo, participou das lutas sociais contra a privatização, a financeirização da economia, os acordos do FMI, a Alca, mas foi pouco a pouco tornando-se menos vinculado às causas sociais e cada vez mais um partido político-eleitoral e institucional. Essa forma de partido meramente institucional e eleitoral está desgastada. Ela chega ao poder e age: se é esquerda, faz o que a direita gosta, e se é direita, faz o que a direita quer. Mas vale a pena lembrar que tanto com Mitterrand e Jospin, na França, Aznar na Espanha, para não falar do caso mais grotesco que é o de Blair na Inglaterra, com muita freqüência essa dita esquerda que tem chegado ao poder tem sido mais competente para desmontar e destruir as lutas e os direitos sociais. Porque, ao sair das lutas sociais e migrar para o aparelho de Estado, ela desorganiza parte das lutas sociais.
Teremos eleição este ano e em 2006. O PT tem um projeto de reeleição. Que impacto tudo isso pode ter nas urnas?
- O PT palaciano sob a batuta do Duda Mendonça (publicitário), o PT ''dudiano'', fez uma opção: ''Não me interessam mais os núcleos organizados que mantiveram as atividades do PT nos anos 80 e 90.'' Esses núcleos eram os trabalhadores rurais, os funcionários públicos e o operariado urbano e rural, além da classe média. Era o mundo ampliado da classe trabalhadora, que deu vitalidade, força, pujança e dinamismo para o PT nos anos 80 e 90. A política atual não é mais essa, se converteu num grande negócio. Os bancos, sim, devem estar batendo palmas. Devem estar se perguntando por que não puseram o Lula antes. Por outro lado, é evidente que essa política é de risco. Perder essa base social sem ampliar a outra é um risco muito grande. Antevejo, e é só uma intuição, derrotas muito grandes nas próximas eleições, porque o eleitorado vai procurar a coerência do partido.
Mas a oposição também não está com uma proposta diferente. E tem o fardo dos maus resultados do passado.
- A oposição, PSDB e PFL, perdeu a eleição de 2002. Os dois partidos, que sustentaram o governo FH, ficaram um ano completamente estupefatos com o continuísmo do governo Lula no que diz respeito à economia. Mas o episódio Waldomiro deu a percepção de que há, muito na intimidade do núcleo do poder, uma abertura para a corrupção. Foi o trunfo que as oposições esperavam. Imagina nós ouvirmos a essa altura o Malan, o Mendonça de Barros, o próprio Fernando Henrique dizerem que Lula está descuidando da dimensão social? Em que mundo estamos? Esse quadro cria uma sensação muito estranha, e a oposição percebeu que, na política, o PT também é igual aos demais. O PT criticava a corrupção do PFL, do governo FH, mas no primeiro ano, no núcleo do poder, deu mostras de que nem tudo é brandura, nem tudo é anticorrupção no espaço do PT. Para não falar do problema de Santo André e de vários outros problemas que maculam um pouco a trajetória do PT. Isso fez com que a oposição partisse de uma surpresa inicial para um momento atual de puro escárnio, de pura crucificação. Hoje é o momento de dizer assim: vamos derrotar o PT nas eleições municipais para preparar a sucessão. Isso implode o projeto que o PT tinha da reeleição.
Qual o seu sentimento em relação ao PT? É de decepção? Frustração?
- O PT, quer a gente goste mais ou goste menos, foi a mais ousada tentativa de um projeto de esquerda, de força e vitalidade. No meu entender, perdeu essa força e essa vitalidade, e hoje é um partido que não pode mais ser compreendido como um partido de esquerda, se se imagina um partido de esquerda com cara socialista, com desenho contrário à ordem atual. E nesse sentido o PT é o partido da ordem. Nós tínhamos a expectativa de que o governo Lula resgatasse a dignidade do povo brasileiro, que resgatasse a profunda dívida social que o Estado brasileiro tem com nossas classes trabalhadoras. É triste constatar que, no tempo transcorrido deste governo, a dívida social não teve num ponto sequer esse pagamento. E ainda está se ampliando.
JORNAL DO BRASIL em 19 de abril de 2004
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