4.04.2004

Desemprego alavanca roubos no trânsito

Pesquisa mostra que este é o crime que mais sofre impacto dos problemas socioeconômicos na cidade de São Paulo

SÍLVIA CORRÊA
DA REPORTAGEM LOCAL

O roubo no trânsito -a pedestres, motoristas e passageiros- é, na capital paulista, a modalidade criminosa que mais sofre o impacto do crescente desemprego, que já atinge quase 2 milhões de pessoas na região metropolitana.Numa escala de 0 a 100, é possível afirmar que o desemprego explica 85% da variação dos ataques em carros, 80% da oscilação dos casos em ônibus e 74% dos altos e baixos dos assaltos a pedestres.São índices altos. Para ter uma idéia da proximidade dessa relação basta dizer que, se as oscilações percentuais de ambos os fenômenos -desemprego e roubos- fossem sempre proporcionais ao longo dos meses, as taxas seriam 100% -12 pontos a mais.Esse é o conceito de variância -uma forma de aferir em que medida, em um certo período, dois fenômenos se relacionam. E a sintonia entre o aumento do número de desempregados e explosão de casos de roubos no trânsito da capital é a principal constatação de uma pesquisa feita pelo Uniemp (Fórum Permanente Universidade-Empresa), fundação ligada à Unicamp, em parceria com a Secretaria de Estado da Segurança Pública.O governo cedeu aos pesquisadores a totalidade dos boletins de ocorrência registrados na capital entre outubro de 2000 a setembro de 2003. E eles procuraram aferir o potencial de impacto em dezenas de crimes de duas das muitas variáveis tradicionalmente listadas para explicar a criminalidade."Não é nova a constatação da influência dos fatores socioeconômicos sobre a criminalidade. Essa é uma retórica antiga. Mas sempre se falou disso de forma ampla, sem que se apontasse que tipo de crime é afetado pelo desemprego e que tipo de desemprego afeta a criminalidade", explica o economista Leandro Piquet Carneiro, 39, professor do departamento de ciência política da Universidade de São Paulo e um dos cinco autores da pesquisa.Na busca de respostas, os estudiosos chegaram a uma curiosa conclusão: se o desemprego é acompanhado por um aumento maior dos roubos, a queda de renda tem um paralelo mais claro com o aumento de furtos -crimes menos agressivos e nos quais há menor exposição do autor.Na opinião do psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg, autor do livro "Cultura da Agressividade", o contraste tem raiz na própria diferença dos processos de marginalização impostos pelo desemprego e pela redução de renda."Quando o indivíduo é deslocado socialmente de maneira radical [pelo desemprego], ele tende a adotar comportamentos mais radicais em vários sentidos. Se o deslocamento se dá aos poucos [por uma perda crescente de renda], ele igualmente responde pouco a pouco a essa violência social", analisa Goldberg.E seqüestros, aumentam com a recessão? "Não é possível fazer correlações com episódios cujo universo estatístico não é significativo, mas podemos dizer que o maior potencial de impacto de um período de crise se dá sobre os índices dos crimes de oportunidade", afirma o economista norte-americano Clifford Alexandre Young, Ph.D em métodos quantitativos e psicologia social. "Porque é evidente que o afetado pelo desemprego não se associa imediatamente em quadrilha."Sem emprego e sem tudoSe as conclusões podem soar elitistas, os estudiosos apressam-se em explicar que o desemprego e a queda de renda são tomados, na pesquisa, como variáveis sintetizadoras de um contexto amplo. É como se fossem a gota d'água de uma processo no qual misturam-se, perigosamente, os elementos do desgastado tecido social."Estamos medindo também mecanismos indiretos de exclusão. Porque ficar sem emprego aqui, onde quase não há mecanismo de proteção social e o mercado de trabalho só encolhe, é bem diferente de ficar desempregado na Europa. Lá certamente o impacto do desemprego sobre a criminalidade é menor", diz Young.A falta de esperança de uma vida melhor seria a tônica por trás desse processo, como já anunciava o norte-americano Elliot Currie há 20 anos. Dizia ele: "As perspectivas pessimistas de encontrar um emprego decente nos mercados esfacelados das grandes cidades produzem um terreno fértil para a reprodução do crime".Esse seria o motivo pelo qual, mostram os números, o desemprego entre jovens de 15 a 17 anos e pessoas de mais de 40 anos -pais desses jovens- seria o que mais alimentaria o crime."Aqui temos um estado de mal-estar social. O sujeito não tem nenhuma chance de ter suas necessidades supridas fora do mercado de trabalho, e a sociedade só o reconhece pelo emprego que tem. O efeito psicológico disso é arrasador", afirma Nancy Cardia, especialista em psicologia social e coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.

Chefe da polícia diz que já é impossível reduzir crimes de oportunidade e aponta "urbanização" como a única saída
Para secretário, repressão está no limite

DA REPORTAGEM LOCAL

Uma clara demonstração de coragem ou a tábua da salvação. Ainda não dá para saber exatamente o que as conclusões do estudo feito pelo Uniemp em parceria com a Secretaria da Segurança Pública vão representar para o governo tucano. Por um lado, a administração pode entrar para a história como a que ousou buscar as causas da violência e enfrentá-las. Por outro, talvez fique marcada como aquela que se agarrou a teses sociológicas para explicar a invencível criminalidade.O secretário da Segurança, Saulo de Castro Abreu Filho, 42, diz que prefere o risco à falta de ousadia. Pré-candidato à Prefeitura de São Paulo, ele afirma claramente que a repressão aos crimes de oportunidade chegou ao limite e propõe ações integradas entre os governos municipais para estancar o avanço dos índices. Leia os principais trechos da entrevista:

Saulo de Castro Abreu Filho - Qual a importância desta pesquisa? Se eu pudesse pedir a você uma relevância, seria que cada um entendesse que tem de fazer o seu papel. Eu gostaria que o cara fechasse a Folha e pensasse: "Realmente não há polícia que chegue". Um dia eu falei que a polícia chegou ao limite da repressão. P..., levei um pau! Aí eu mandei fazer este estudo. Porque uma coisa que me deixa muito irritado são essas políticas públicas nas quais as pessoas trabalham como avestruz: fingem que o problema não existe para, quem sabe, ele desaparecer. Mas ele só piora. Se 85% dos crimes estão associados ao desemprego, esquece polícia.

Folha - Por que a cidade é insegura?
Abreu Filho - Porque é uma cidade muito ilegal, com um ambiente permissivo. É uma cidade desregrada. Há a sensação de que aqui tudo pode, tudo vale. A coisa da tolerância zero qual é? Não é dar pau no bandido, é não deixar começar. Não deixar esculachar.

Folha - Então a solução não existe, porque São Paulo não vai nascer e crescer de novo.
Abreu Filho - Existe! Tem de regrar. Qual o plano diretor daqui?

Folha - Mas existe em quanto tempo? O cidadão tem pressa.
Abreu Filho - Ah, mas nós estamos trabalhando com uma geração. A angústia traz a simplicidade da resposta. Aí vem o viés: "Tem de pôr polícia na rua". E os governantes vão caindo nessa armadilha. O Jânio [Quadros] criou uma guarda municipal, e ela só foi aumentando. E o Benedito Mariano [secretário municipal de Segurança Urbana] disse que vai aumentar para 7.000 homens. Caiu na armadilha, na tentação da resposta imediata! Vamos encher de polícia e dar tiro em pobre?

Folha - Então, se polícia na rua é imediatismo, qual a solução?
Abreu Filho - Precisava de polícia. E colocamos. São 23 mil PMs.

Folha - É suficiente?
Abreu Filho - É, mas vamos ter mais uns 2.000.
Folha - Mas se a solução está fora da polícia...
Abreu Filho - A gente está chamando todo mundo -governo federal e principalmente prefeituras- para trabalhar junto. Não tem jeito. Tem que chamar o subprefeito, acionar os Consegs [Conselhos Comunitários de Segurança], atacar no varejo. Mas você pega a ata de reunião dos Consegs e vem assim: rua esburacada, falta de iluminação, ponto distante. Mas eu não ponho ponto! Isso sem falar nas questões estruturais. OK, o dia que o país se desenvolver.... Mas eu vou ser assaltado até o país se desenvolver?

Folha - É essa a pergunta.
Abreu Filho - Pois é. Da parte da polícia, qual é o limite? A prisão. E nós vamos continuar prendendo.

Folha - Ao menos os jovens de hoje vão ver solução?
Abreu Filho - Acho que sim. Mas a primeira coisa é parar de acreditar que a polícia vai dar jeito nisso. A polícia vai fazer o quê? Vai lidar com a sensação de impunidade.

Folha - O desemprego e a desorganização urbana são os maiores problemas do país?
Abreu Filho - São. Se você pegar a década de 90, quando esse quadro foi mais grave, quando desabou.

Folha - Mas a década de 90 foi dominada pelo governo do seu partido. Ele fracassou?
Abreu Filho - Eu acho que foi feito o possível e não se criou uma esperança de algo que se sabia que não se iria cumprir. É o que eu estou fazendo aqui, agora. Eu poderia fazer uma coisa demagógica: "Fique tranqüila, ponho 10 mil policiais e o bandido vai fugir para Minas". Não vai. Não vamos resolver com polícia o problema de dois terços de exclusão social. Tem de ter saúde, educação...

Folha - Mas o seu partido está no governo do Estado há dez anos. Não resolveu por quê?
Abreu Filho - Não resolveu porque as intervenções no município nunca foram bem coordenadas entre Estado e prefeitura.

Folha - A repressão foi ao limite?
Abreu Filho - Acho que alguns [crimes] nós vamos conseguir reduzir ainda mais, os mais organizados, com quadrilha. Outros, esses contra o patrimônio, dificilmente. Posso até dizer que é impossível reduzir esses índices.

Folha - Cite, então, duas ações que poderiam ajudar.
Abreu Filho - Urbanizar favelas e cortiços. Esse ambiente introjeta o conceito de vale-tudo. Vale montar barraca e vender CD falso. Se não der dinheiro, vale meter o revólver na sua cara. A primeira coisa é intolerância. Intolerância com desmanches, por exemplo. Tem pai de família morrendo porque o fulano quer um farol mais barato. Não vai ter. Manda trancar tudo. Que se dane. Não dá para ficar no paliativo: toma chazinho, florais, acupuntura. Tudo muito simpático, mas tem hora que não tem jeito: tem de tocar um antibiótico goela abaixo.

Folha - É para fazer isso que o sr. quer ser prefeito?
Abreu Filho - Quero que qualquer prefeito faça. Fazer algo que ninguém tenha tido peito. Política de segurança tem de ser como política social, não como essa mania de comprar carro, arma, montar guarda. Poxa, o Mariano é sociólogo e agora o grande bastião dele é guardinha andar armado! Não é razoável que alguém pense assim. (SÍLVIA CORRÊA)

FSP, 04/04/2004