4.11.2004

Tempo de prevenção às LER/Dort

MARIA JOSÉ O'NEILL e COSMO PALÁSIO DE MORAES JR.

A história da humanidade tem alguns momentos bastante interessantes que, embora jamais tenham sido tratados como fatos históricos, são, na verdade, os que realmente dividem a nossa caminhada e mudam todo o sentido da trajetória humana. Um deles, com certeza, diz respeito ao impreciso momento em que alguns homens entenderam que a eles caberia o uso do raciocínio e aos demais, apenas o uso das mãos. Ao longo dos tempos, chamaram isso de trabalho e, para garantir sua legitimidade, agregaram a ele conceitos filosóficos atribuindo sua origem ao desígnio dos deuses.Durante boa parte da história e mesmo nos dias atuais, esse velho paradigma segue norteando as relações humanas e, embora muitos afirmem que o trabalho liberta, o que se vê, na verdade, na maior parte do mundo são, ainda, as práticas da escravidão, muitas delas baseadas na diferença de cor da pele, de origem e de gênero. Em outros lugares, revestidos com a aparência da modernidade, o trabalho mata, mutila e adoece.Segundo estimativas da OIT (Organização Internacional do Trabalho), mais de 1,5 milhão de pessoas morrem todos os anos em razão de doenças relacionadas ao trabalho. Diretamente, o trabalho mata cerca de 355 mil pessoas anualmente -o Brasil é responsável por cerca de 1% de todas essas mortes. São números assustadores. O trabalho, definido como meio para garantir a vida e o desenvolvimento, mata muito mais do que as guerras, símbolo da irracionalidade e da tirania humanas.E, até aqui, estamos apenas tratando do lado visível da questão. É bom lembrar que existe um universo de dor e sofrimento a ser desvendado e que deve ser encarado com seriedade, pois, embora as LER (Lesões por Esforços Repetitivos) tenham sido detectadas pela primeira vez em 1700, até hoje são tratadas de forma velada e muitas vezes desrespeitosa, causando humilhação aos trabalhadores.
Entender os fatores que propiciam o surgimento das LER não é muito difícil mesmo para os leigos em saúde ocupacional
As LER ou Dort (Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho), nomenclatura adotada pelo INSS, são siglas que abrigam diversas doenças, tais como tendinite, tenossinovite, bursite e síndrome do túnel do carpo. Todas elas têm em comum a capacidade de causar grande sofrimento às pessoas e a dificuldade de caracterização devido à sua sutileza. Muitas, quando chegam de fato a ser diagnosticadas, já não permitem mais regressão dos quadros, levando o paciente a um nível de incapacitação não só para o trabalho, mas para grande parte das atividades cotidianas e sociais, como escrever, conduzir veículos, pegar filhos no colo etc.Os portadores dessas doenças pagam um preço muito alto pela falta de conhecimento e programas de prevenção, e a sociedade arca com os custos.O problema é um fenômeno mundial. Nos EUA, apenas em 1998, foram notificados 650 mil novos casos, sendo a LER responsável por dois terços do absenteísmo da maior economia do mundo, gerando um custo estimado pela Organização Mundial da Saúde em torno de US$ 15 bilhões a US$ 20 bilhões. No Brasil, onde as LER só foram reconhecidas como doença ocupacional em 1997, os números também assustam. Na pesquisa feita pelo Datafolha, 6% da população laborativa de São Paulo aponta diagnósticos de LER. O quadro torna-se ainda mais preocupante quando se sabe que apenas 2% das empresas emitem a Comunicação de Acidentes do Trabalho relativa às LER. Por trás da omissão, cresce o passivo trabalhista dessas empresas e, conseqüentemente, o assunto, mais cedo ou mais tarde, vai afetar a condição já precária de nossa Previdência Social.Entender os fatores que propiciam o surgimento das LER não é muito difícil mesmo para os leigos em saúde ocupacional: tarefas repetitivas e monótonas, ritmo acelerado de trabalho, excesso de jornadas e ausência de pausas, adoção de posturas inadequadas e fatores biopsicossociais, como pressões da chefia e metas mal ajustadas são comuns na grande maioria das empresas e raramente são associados aos danos causados aos trabalhadores. O interessante é que são, ao mesmo tempo, muitos desses fatores que inibem o desenvolvimento das empresas de forma consistente, prejudicando a produtividade e, por conseqüência, a competitividade.Nestes tempos de crise econômica, vale fazer uma ampla reflexão sobre os objetivos do trabalho, da saúde e da competitividade tanto para os empresários como para a sociedade, trazendo para dentro desse universo elementos que possam contribuir com o desenvolvimento holístico, e não apenas para o atendimento de necessidades de uns poucos.Esperamos que acordemos ainda a tempo de usar o respeito à vida e a sua dignidade como fator positivo para fazermos frente às necessidades de um mundo globalizado. Pode ser esse o caminho para que a forma de ser do povo brasileiro sirva como base para o verdadeiro progresso.

Maria José Pereira da Silva O'Neill, 47, jornalista, é presidente do Instituto Nacional de Prevenção às LER/Dort. Cosmo Palásio de Moraes Júnior, 42, técnico de segurança e trabalho, é coordenador do Grupo Virtual SESMT.

FSP, 11/04/2004