2.01.2004

Vitória do toyotismo põe relações de trabalho em xeque

Especialistas vêem na ultrapassagem da Ford pela Toyota uma guinada no modelo produtivo

Marcelo Kischinhevsky

''Proteja a Toyota para proteger a sua vida''. O lema, afixado em fábricas do conglomerado automobilístico japonês por todo o mundo a partir dos anos 80, revela uma filosofia de gestão empresarial e de relações trabalhistas bem distinta das antigas linhas de montagem, em que operários limitavam-se a apertar um mesmo parafuso durante toda a vida. Este modelo, batizado toyotismo, que combina investimento tecnológico, saltos de produtividade e inédito engajamento da força de trabalho, emerge no século 21 como sonho de consumo para uma parcela crescente do empresariado: no ano passado, pela primeira vez na história, a Toyota superou a Ford e se tornou a segunda maior fabricante de automóveis do planeta, atrás apenas da também americana General Motors.
O feito põe em evidência uma discussão que já corria no meio acadêmico há quase duas décadas, envolvendo a oposição fordismo x toyotismo. O primeiro, nascido nos Estados Unidos, com o magnata Henry Ford, é considerado por especialistas o modelo moderno por excelência, marcando, na virada do século 19 para o 20, o surgimento de toda uma lógica de produção em série, com funcionários especializados em cada etapa do processo. O segundo, forjado no Japão do pós-Guerra pelo engenheiro Taiichi Ohno, é identificado com o capitalismo contemporâneo, dos ganhos de produtividade e do just-in-time - baixos estoques e produção conforme demanda.
A diferença, do ponto de vista do trabalhador, é brutal.
- No toyotismo, a empresa delega aos trabalhadores a decisão sobre o grau de exploração a que estão dispostos a se submeter, de acordo com resultados que se pretende obter - explica José Ricardo Tauile, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.
Autor de livros como Para (re)construir o Brasil contemporâneo, Tauile adverte que o toyotismo não é uma receita de bolo e vem assumindo características locais conforme sua expansão, desde os anos 80. Sua dinâmica teve forte impacto sobre a cultura empresarial ocidental, especialmente nas indústrias de tecnologia de ponta ligadas à era da informação.
- É uma nova relação de produção, que forja uma parceria em torno de interesses mínimos comuns para buscar benefícios máximos comuns - explica o professor, lembrando que as indústrias que adotaram essa filosofia costumam selar com fornecedores contratos de longo prazo, buscando o aprimoramento constante da qualidade dos produtos. - Claro que, para o trabalhador, o modelo pode ser tão ou mais espoliador do que o fordista, mas certamente é mais eficaz.
Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, autor de livros como Adeus ao trabalho?, lembra que, em sua origem japonesa, o toyotismo exigia dos trabalhadores um engajamento inédito e alta qualificação profissional, mas dava em troca empregos virtualmente vitalícios e vantagens financeiras. Segundo o professor, em outros países, como o Brasil, o modelo deixou sua marca, mas as empresas acabaram adotando sistemas híbridos, combinando os ganhos de produtividade à terceirização de mão-de-obra.
- Tomando emprestado um termo da química, houve uma liofilização organizacional. Ou seja, um processo de enxugamento e secagem das empresas, com crescente automatização e precarização das relações de trabalho - aponta Antunes. - Fecham-se vagas e quem fica no emprego acaba trabalhando mais e de forma mais intensa.
Para ele, um exemplo claro da transição de modelos no Brasil é a Volkswagen, que mantém no ABC paulista uma fábrica ''fordista, concebida como uma cidade'' e recentemente abriu em Resende, no Sul Fluminense, uma unidade toyotista, com ''pequeno número de funcionários efetivos, um exército de terceirizados e altíssima produtividade''.
Tauile e Antunes concordam que a questão pendente no toyotismo é como estender aos trabalhadores os ganhos proporcionados aos empresários. Este, sim, configura o maior desafio posto pela transição de modelo produtivo.
O professor José Ricardo Tauile, da UFRJ, reconhece que o toyotismo tem um viés autoritário, já que pressupõe tamanho engajamento dos trabalhadores no processo produtivo que qualquer falha ou discordância faz o operário responsável cair em desgraça. No Japão, com o emprego praticamente vitalício, a punição do dissidente era o ostracismo: todos os colegas lhe voltavam as costas. Em outros países, onde não há estabilidade, a divergência pode significar a demissão sumária.
Apesar disso, diz Tauile, o toyotismo apresenta similaridades com o modelo autogestionário, que remonta ao século 19, mas vem ganhando força com o avanço das cooperativas.
- Nos dois modelos, o trabalhador se sente responsável pela qualidade do produto final - identifica o economista, ressaltando que a autogestão tem sido, cada vez mais, a saída para empresas à beira da falência que têm grande passivo trabalhista e acabam assumidas por seus empregados.
O toyotismo está em constante evolução. A Toyota colhe hoje os frutos de uma guinada iniciada em 2000. O tradicional conceito de kaizen, ou seja, melhorias constantes no processo produtivo, deu lugar ao kaikaku, ou inovação drástica. A mudança veio acompanhada pelo plano batizado Construction of cost competitiveness 21 (Construção de custos competitivos para o século 21). No ano passado, as vendas mundiais cresceram 10%, atingindo 6,783 milhões de veículos, enquanto as da Ford encolheram 3,6% (6,72 milhões). A líder GM vendeu 8,59 milhões.

JORNAL DO BRASIL, 01.02.2004